sexta-feira, 26 de outubro de 2012

Hesse e o segredo de Buda

Hesse e o segredo de Buda


Passaram-se 90 anos desde a publicação de Sidarta. O pequeno romance – que Hermann Hesse começou a escrever no inverno de 1919 – nascia como reação à guerra e às suas devastações. Há muito tempo, na sua mente, havia se assomado a ideia de que a Europa era uma civilização em declínio.



A reportagem é de Antonio Gnoli, publicada no jornal La Repubblica, 02-09-2012. A tradução é de Moisés Sbardelotto.



Alguns anos antes, o escritor havia feito uma viagem à Índia, que teve o sabor da iniciação e do afastamento da Europa: "Eu fugia dela e quase a odiava, a Europa, com o seu gosto grosseiro, com o seu barulho de feira de interior, com a sua inquietação sem fôlego, com a sua ânsia áspera e impassível de g ozar", escreveu ele em um ensaio que agora vem à tona – juntamente com uma pequena coleção de cartas, de trechos de diário e de outras contribuição – como apêndice a uma nova edição de Sidarta, publicada no dia 5 de setembro pela editora Adelphi (na bela tradução de Massimo Mila).



Completar o livro não foi simples. Uma crise muito severa havia secado a veia narrativa. A esposa, doente da mente e trancada em um manicômio, a pobreza cada vez mais insidiosa, a separação dos filhos contribuíram para aumentar a precariedade do escritor. Foram necessários mais de dois anos para que Hesse completasse a sua "lenda indiana".



E, em 1922, quando o romance saiu, a acolhida não foi emocionante. Ele comunicou a Romain Rolland a decepção por causa dos amigos mais próximos que se calavam e acrescentou que não tinha ouvido da crítica nos jornais "nada mais até agora do que express� �es de respeitoso embaraço". Pode-se entender a reação desfavorável a um livro incomum que, com os olhos de um europeu, contava a Índia através da Índia.



Há muito tempo sabemos que existem livros nascidos para marcar a estação de uma vida. Que borrifam com as suas próprias tramas simples a imaginação de uma era ainda não adulta nem formada. As suas páginas são vividas com ainda mais intensidade quanto mais forte for o desconforto daqueles que se agarram a elas como a um objeto de culto e de salvação.



Sidarta desenvolveria excelentemente a tarefa de arrastar almas incertas a mundos envoltos no sonho oriental. Com o tempo, de fato, esse relato – de tons às vezes fabulísticos e ligeiramente cautelares – conquistaria à sua própria causa literária dezenas de milhões de leitores. Onde estava o seu fascínio?



Hesse escreveu uma história sem pretensões especulativas. Qualquer pessoa que tivesse lido a vida de Sidarta captaria a determinação com que o jovem filho de um brâmane buscava a sua própria estrada sem compromissos. O inquieto Sidarta desejava uma iniciação à vida e à verdade. No começo, ele queria se tornar um sâmana, um asceta cujas práticas místicas o ajudariam a despersonalizar seu próprio ser, a criar aquele vazio interior, condição necessária para assumir qualquer nova forma que o mundo lhe oferecia: a de uma garça-real ou de um chacal, de uma pedra ou de uma madeira, da fome ou da sede.



"Muito aprendeu Sidarta com os sâmanas, muitos caminhos aprendeu a percorrer para sair do próprio eu", escreveu Hesse. Mas ao jovem, dotado de grande inteligência e sensibilidade, não bastava o ensinamento das artes dos sâmanas. Naquele tempo, uma figura circulava e fazia prosélitos: era o Buda. E quando Sidarta o encontrou o reconheceu imediatamente: "Eu o vi, um homenzinho simples, de amarelo cozido, que caminhava tranquilo com a sua tigela nas mãos para as esmolas".



Sidarta – diferentemente do amigo Govinda – não quis se converter às ideias do novo mestre. E, embora admirasse a calma e a força, e apreciasse a sua doutrina compassiva, algo o impedia de abraçar a sua fé. Não que as palavras do Buda soassem falsas. Ao contrário. Mas ele misteriosamente sabia que devia continuar a viagem, "não para procurar uma outra doutrina melhor, pois não há nenhuma, mas sim para abandonar todas as doutrinas e todos os mestres e alcançar sozinho a minha meta ou morrer", disse Sidarta.



A verdade, explica Hesse, não é o fruto de uma doutrina que um mestre transmite ao aluno, não é um saber codificado e aprendido. Mas sim uma predisposição da alma, um olhar livre e perdido dirigido ao pr óprio interior. É isso que Sidarta, também nisso diferentemente de Govinda, intui. Ele sabe que a viagem é mais importante do que a meta, e que se perder, ou se desviar da estrada reta, é igualmente necessário para se reencontrar.



O encontro com Kamala, a prostituta pela qual ele se apaixona, e o sucesso nos negócios que lhe sorri nos negócios arrastam, aparentemente, Sidarta a um turbilhão de brutais sensações. Na realidade, mesmo o mais ignóbil dos comportamentos faz parte de um projeto misterioso: "Ele tinha que descer ao mundo, perder-se no prazer e no poder, nas mulheres e no ouro, ele tinha que se tornar um mercador, um jogador de dados, um bêbado e um avarento, para que o sacerdote e o sâmana nele fossem mortos".



Hesse nos mostra as etapas de um redespertar e o caminho para alcançar a sabedoria. Que não é comunicável nem transmissível. Aporta -se nela na alternância da dor e do prazer, da queda e do renascimento, do samsara e do nirvana, da ilusão e da verdade: "De toda a verdade, o contrário também é verdadeiro", sentencia Sidarta.



E a verdade não é o fruto de uma doutrina, por mais nobre que possa ser, como a ensinada pelo Buda. A verdade – que indica com o próprio exemplo o barqueiro Vasudeva – era o acordo da própria voz com a voz do rio. Com a água que o compõe. E ela não é um princípio, não é um conceito, mas sim uma pura superfície sobre a qual se reflete a mente de Sidarta. A verdade que ele busca não é o logos ocidental: é a fluida a plenitude da mente que o rio encheu. Foi a mensagem que obscuramente milhões de leitores retiraram do livro.



Depois do Nobel, ganho em 1946, e os reconhecimentos de Thomas Mann, Stefan Zweig, Hugo Ball (equilib rados pelas críticas mordazes de Gottfried Benn), Hesse se tornou, relutantemente, um guru, uma fonte de iluminação espiritual, o testemunho de uma sabedoria vivida com sinceridade. Foi assim que Sidarta acabou na mochila daqueles jovens que, nos anos 1960, empreenderam a sua viagem de conhecimento ao Oriente. Uma moda que se espalhou da América à Europa": cúmplices foram a música, as drogas e uma vaga adesão ao misticismo.



Caravanas de jovens partiram à descoberta da Índia com a bênção dos poetas da Geração Beat e de algumas canções agradáveis. As palavras que Sidarta lhes havia ensinado – como tratamento contra as neuroses, a alienação, a agressividade – não estavam nos outros livros. Aquele sincero entusiasmo raramente foi tocado pela dúvida de que uma civilização, por mais que se possa amá-la, ainda assim é distante, difícil de penetrar e refratária aos entusiasmos fáceis.



Surpreendentemente, o herege Sidarta se tornou a mais adocicada realização do "super-homem" nietzscheano: com ele reviveram a morte e o renascimento de todos os valores. Acredito que aqui reside o mais sugestivo segredo do sucesso: ensinar a transgressão e a submissão. Fazer conviver o desvio e a norma. Aceitar a vida mudando o seu sentido.



Olhando bem, Sidarta foi o primeiro de uma infinita série de livros "pedagógicos", destinados a cuidar das nossas almas. Mesmo que hoje a Índia, senhora minha, não seja mais a de antigamente.



domingo, 19 de agosto de 2012

Uma nova espiritualidade global?



Em seu último livro, Souci de soi, conscience du monde [Cuidado de si, consciência do mundo], o sociólogo Raphaël Lioger defende que a nossa época é o cenário de uma transformação radical do religioso, na qual o sagrado invade todas as esferas da vida social.



A reportagem é de Antoine Dhulster, publicada na revista Témoignage Chrétien, 23-06-2012. A tradução é de Moisés Sbardelotto.



Eis a entrevista.



Em seu último livro, você explica que a nossa época assiste ao surgimento de uma nova religião: o indivíduo-globalismo. Você não vai um pouco longe demais ao defini-la como uma religião?



Tudo depende do que se entende por religião. Para mim, é o âmbito das atividades humanas em que se desenvolvem as instituições especializadas na produção e na difusão de mitos. Os mitos são os grandes relatos implícitos, impensados, aos quais todos nós aderimos. Eles estruturam a nossa existência e lhe dão um sentido. E isso, muito além da esfera "religiosa" em sentido estrito.



Por exemplo, no mundo cristão, a crença não se detém nas portas das igrejas. Ela está difundida em toda a sociedade, até mesmo nas atividades cotidianas. Eu acredito que o nosso mundo desenvolvido, ou pós-industrial, está submetido a uma nova tensão mítica, a um novo grande relato. Nesse novo marco, o indivíduo busca a sua realização, a resposta às suas perguntas metafísicas, em um processo que inclui preocupações globais: a ecologia, a paz mundial etc. A tensão entre essas duas dimensões – individual e global – é o que chamo indivíduo-globalismo.



Em que se baseia essa espiritualidade?



Em primeiro lugar, em uma visão moderna do ser humano, radicalmente diferente daquela que dominou durante séculos. Na antiguidade grega, pensava-se o ser humano como uma pessoa que adquiria sua dignidade na participação na vida da polis. Depois, dependendo dos contextos e das épocas, na vida da trib o, da família e da nação. Na época moderna, nasce o indivíduo. O conceito de indivíduo é a ideia segundo a qual o ser humano se volta à sua subjetividade, que é abissal, e que se torna, ela mesma, uma espécie de transcendência. Segundo elemento: a nossa visão de mundo. Também a partir da época moderna, se desenvolve uma visão do nosso universo como um conjunto infinito.



Até esse momento, a própria ideia de infinito era muito negativa. Os gregos pensavam o cosmos como algo perfeito, porque finito, determinado. Em pensadores como Kant, no fim do século XVIII, vê-se aparecer, portanto, essa dupla noção de indivíduo, que conquista a sua subjetividade em um mundo que se pensa já infinito. A lei moral está nele, como subjetividade abissal. E, por outro lado, há o universo infinito, o céu estrelado acima dele. No século XIX, particularmente com o movimento romântico, esse esquema de pensamento supera o quadro da razão e conquista o campo da emoção. Depois, alcança os nossos modos de viver. Antes marginalmente, em comunidades como a de Monte Verità, na Suíça, depois de forma espetacular com a Nova Era nos anos 1960 e com as nossas preocupações místicas e ecológicas hoje.



Eu tento mostrar que há uma continuidade entre esse longo processo intelectual – a subjetividade do sujeito e o mundo pensado como infinito – e o nosso modo de viver atual. Os mesmos elementos são mobilizados, na busca do bem-estar pessoal nos atos mais cotidianos e, ao mesmo tempo, com a preocupação de um equilíbrio global. Se alguém tivesse hibernando nos anos 1970 e se acordasse agora, constataria que os hippies tomaram o poder. Muitos pensadores analisaram essa reviravolta como a da pós-modernidade. Pessoalmente, defendo a ideia de que a pós-modernidade é a modernidade em atos.



Como imaginar a relação entre o indivíduo-globalismo e as religiões institucionais?



Há uma coexistência entre esse esquema e as grandes religiões. Estas continuam existindo porque o velho mundo, que as criou, ainda existe. Mas estamos em um período de transição. E, a meu ver, existem três possibilidades para as grandes religiões: ou resistem agarrando-se ao passado e, nesse caso, haverá a fuga dos fiéis; ou fazem compromissos com a modernidade e se mantêm vivas; ou antecipam as transformações futuras e, nesse caso, aumentarão seus fiéis.



Concretamente: no cristianismo, uma parte do indivíduo-globalismo, na sua versão emocional, se manifesta nos movimentos evangélicos, que veiculam uma efervescência coletiva e fazem com que os fiéis acreditem que poderão mudar as suas vidas. A Igreja Católica resistiu a essa mudança trazida pelos evangélicos. Resultado: perdeu todos os ciganos franceses, ou se tornaram praticamente neoevangélicos, embora continuando a praticar o culto de Maria, que normalmente é incompatível com o culto protestante, mas isso não é problema para eles. Em um certo ponto, a Igreja começou a compreender esse movimento e "enquadrou" a renovação carismática. Assim, ela passou para a segunda atitude, a da negociação.



Então, a Igreja Católica ainda tem uma carta na manga com relação à modernidade?



Sim, de forma evidente. O indivíduo-globalismo é o produto da modernidade. Mas também devemos l embrar que a modernidade é o produto da evolução dialética do cristianismo, do qual a Igreja Católica participa há 2.000 anos. A relação com o indivíduo pensado como sagrado está presente cristianismo mediante a ideia de encarnação. Lembremos ainda que a filosofia iluminista é um desenvolvimento da teologia cristã em um certo nível. Ora, é justamente a filosofia iluminista que faz nascer o indivíduo-globalismo. Portanto, a Igreja Católica pode se recompor compativelmente com esse novo mito. E ela já faz isso, através das suas redes e das suas ONGs que levam a voz católica ao mundo, à ONU, às instituições internacionais... Mas essa mudança de paradigma pressupõe o abandono de uma parte da sua dogmática, que a mantém nos velhos esquemas.



A Igreja poderia abandonar a sua dogmática? Você acredita nisso?



Pode haver uma resistência muito forte, mas a história nos mostra que a necessidade faz a norma. Por enquanto, a Igreja não está à beira do abismo, mas, quando chegar ao ponto em que não poderá nem mesmo manter o Vaticano, acho que ela aceitará reinterpretar o seu dogma.



Você certamente percebeu que a tendência atual, ao contrário, é o do retorno à Tradição...



Certamente, é um reflexo clássico, provocado pelo medo. Quando temos medo, nos retraímos. Falando em termos de imagem, constroem-se barragens para se proteger das correntes dominantes. Mas, ao fazer isso, proibimo-nos de pensar ou de compreender essas correntes, fixamos a atenção sobre as barragens artificiais. É o mesmo processo do debate francês sobre a identidade. Se fazemos um debate sobre a identidade, significa que a identidade não é mais evidente. Naturalmente, a identidade é algo impensável. Se eu preciso torná-la reflexivo, quer dizer que ela não existe mais. É a mesma coisa para a religião. Quando um indivíduo qu er se pensar tradicional, ou integralista, constata implicitamente que a sua tradição morreu.



Que fé, que conteúdo você vê para essa nova espiritualidade que anuncia?



As religiões se recompõem em torno a uma noção central, a energia, que é, ao mesmo tempo, salvadora e pessoal. Daí a noção de conexão, de conectividade entre o individual e o global, entre o indivíduo e a natureza. Nesse contexto, o próprio dogma católico é reinterpretado com essa ideia de energia. É preciso pensá-lo perto do imaginário da ioga, da espiritualidade oriental.



Então a sua tese é a de uma releitura da tradição cristã em uma versão sincrética influenciada pelas outras formas de espiritualidade?



Sim, e isso terá como resultado tornar-nos bipolares. Interiorizaremos, cada um de nós ao nosso nível, as culturas diferentes à nossa. Por exemplo, incensaremos o taoísmo ou o budismo, porque se pre ssupõe que sejam próximos à natureza. E, simetricamente, rejeitaremos o catolicismo... mas só em um primeiro momento, porque certos aspectos do catolicismo permitem pensar a ecologia, a união com a natureza, o equilíbrio global. É neste jogo de confrontos que o rolo compressor indivíduo-global avança e aproxima as religiões, focando-se na sua estética, mas removendo-lhes o seu núcleo dogmático. As religiões tornam-se pouco a pouco intercambiáveis. Na prática, vê-se o aparecimento de híbridos: faz-se ioga cabalística, gi gong cristão ou meditação zen recebendo a comunhão...



Mas, na prática, todos esses comportamentos continuam sendo individuais, muito limitados. Que rela� �ão existe com a prática religiosa da maioria?



Isso é muito menos limitado do que se pensa. No Ocidente, essa espiritualidade é levada adiante pela classe média. Falando em termos midiáticos, os "bobo" [neologismo criado pelo jornalista norte-americano David Brooks a partir da contração de "burguês-boêmio", para se referir a uma pessoa de um certo nível de vida com um estilo de vida pouco convencional]. Mas não só. Poderiam ser acrescentados os católicos de esquerda, muito interessados no diálogo inter-religioso ou o âmbito humanitário, processos indiscutivelmente indivíduo-globais.



As outras partes da população aderem ao mito indivíduo-global, mas não podem se permitir isso completamente, eu poderia dizer. O indivíduo-globalismo é a cor dominante do quadro, mas uma parte da população o percebe como degradado. Nem todos vivem o conhecimento de si mesmo, a realização pessoal, mas todos aspiram a isso. O único que chega a viver essa busca no seu cotidiano é o "bobo" no seu trabalho. Mas a busca, no entanto, se refere a todos. Assim, os outros vão viver os mesmos problemas... no seu tempo livre, fazendo estágios de desenvolvimento pessoal, viagens espirituais, consumindo produtos orgânicos etc.



E em escala planetária?



Encontramos a mesma assimetria. Aqueles que são objeto dos novos cultos (os povos tradicionais, por excelência) sabem que fazem parte do cenário da experiência espiritual que os cidadãos das sociedades pós-industriais buscam viver. Eles mesmos sã o obrigados a imaginar o que aqueles turistas esperam esteticamente para fazer com que vivam uma experiência. Senão, perdem a força de atração econômica. Portanto, há uma forte pressão ideológica, em que aqueles que jogam esse jogo de papéis (o que eu chamo de "hiperbeduínos" ou "hiperzulus") acabam se afastando do "núcleo" da sua cultura para corresponder às expectativas dos cidadãos das sociedades pós-industriais. Desse ponto de vista, a "valorização" do outro, na realidade, contribui para a sua destruição identitária. Em escala planetária, é a uniformização. As únicas diferenças que restam são estéticas, permitem viajar e viver a aventura para progredir interiormente e encontrar a si mesmos.



Essa mudança lhe parece irreversível?



Sim. Há precisamente a formação de um fundo mítico comum a toda a humanidade, que corresponde a uma situação política, econômica, em que todos já tomaram consciência da condição dos outros. Portanto, não é possível voltar atrás. Quais serão as consequências dessa revolução em algumas décadas? Poderão ser positivas ou negativas. Pode-se até imaginar um integralismo indivíduo-globalista: seitas de loucos poderiam querer destruir a humanidade ou instaurar uma ditadura anti-humanista por causa das devastações causadas pelos seres humanos ao meio ambiente. É possível. Assim como é possível um mundo em que a realização pessoal se tornará a norma dominante. O roteiro ainda está para ser escrito.

quarta-feira, 20 de junho de 2012

Religião e geopolítica







Geografia de Deus.

Artigo de Massimo Faggioli


Qual é a relação entre religião e geopolítica? Dois livros, publicados na Itália e nos EUA, analisam o papel do cristianismo e da desocidentalização do sistema político internacional.



A análise é de Massimo Faggioli, doutor em história da religião e professor de história do cristianismo da University of St. Thomas, em Minneapolis-St. Paul, nos EUA. O artigo foi publicado no jornal Europa, 13-06-2012. A tradução é de Moisés Sbardelotto.



Eis o texto.



As religiões têm uma visão própria do mundo, não só do ponto de vista filosófico, mas também do ponto de vista geopolítico: falar da Europa como "berço espiritual do cristianismo" é teologizar um assunto geopolítico que tem a ver com o Império Romano e Carlos Magno mais do que com Jesus Cristo.



Às vésperas do aniversário do edito de Constantino (313-2013) e em uma Europa que poderia se preparar, do ponto de vista geopolítico, para perder a Grécia com todo o favor à Turquia ou à Rússia, é salutar redescobrir o vínculo entre religião e geopolítica em um âmbito ocidental, e não confinado ao mundo islâmico. Dois recentes trabalhos publicados na Itália e nos EUA lançam luz sobre essa questão.



O primeiro é o enorme volume de Andrew Preston, Sword of the Spirit, Shield of Faith: Religion in American War and Diplomacy [Espada do Espírito, escudo da fé: Religião na guerra e na diplomacia norte-americana] (Ed. Knopf, 2012, 832 páginas), concebido pelo jovem autor nos EUA justamente nos meses de lançamento da guerra no Iraque em 2003.



O livro reconstrói o papel do cristianismo como teologia e como religião civil nos EUA a partir do século XVII e das guerras dos colonos britânicos contra os índios nativos americanos e contra os franceses católicos. O livro continua, com o segundo capítulo, ilustrando o fato de que o cristianismo protestante na América do Norte funcionou como uma "teologia da libertação" ante litteram – libertação da escravidão do Império Britânico – por ocasião da Revolução Americana.



Os pais fundadores do sistema constitucional norte-americano (não particularmente infundidos com o espírito religioso, do ponto de vista, ao contrário) lançaram as bases para os três princípios fundamentais da política externa norte-americana: "unilateralismo republicanismo e separatismo" (p. 89). O período posterior, da primeira metade do século XIX, é o dos EUA como "império benevolente", mas ainda assim império, que compartilhou com o cristianismo das grandes potências europeias o binômio típico do século XIX colonial, "expansão e missão".



A diferença consiste na doutrina do "destino manifesto", expressão cunhada pelo democrata jacksoniano John O'Sullivan, segundo a qual os EUA são uma nação "criada pela mão de Deus" e "enviada por Deus a uma missão abençoada às nações do mundo": em outras palavras, "a democracia norte-americana nada mais é do que o cristianismo traduzido nas relações políticas entre homens" (p. 135).



A Guerra Civil de Lincoln e a abolição da escravatura, nesse sentido, assumem para Preston o valor de primeira guerra humanitária. Apenas poucas décadas depois, no início do século XX, tem-se a presidência de Wilson e a "segunda cruzada" contra a Alemanha, com base em uma plataforma moral necessária para a nova ordem mundial.



As décadas posteriores, para Preston, veem uma "terceira cruzada", a de Franklin Roosevelt contra Hitler, e uma "quarta cruzada" dos presidentes Truman e Eisenhower contra o comunismo soviético. São interessantes os capítulos dedicados ao Holocausto e ao significado moral da Segunda Guerra Mundial para os EUA, e à casta dos "sacerdotes da Guerra Fria" George Kennan e John Foster Dulles.



O oitavo e último capítulo se concentra sobre os anos de Kennedy a Reagan e sobre o nascimento de uma "política externa judaico-cristã" graças a três fatores: o papel do Holocausto na consciência moral norte-americana, a vontade dos judeus norte-americanos de defender a sua identidade no mundo moderno e o desenvolvimento do multiculturalismo como oportunidade para os judeus norte-americanos para afirmar a sua própria específica "não originalmente norte-americana" em um ambiente amigável como o do melting pot.



A passagem de Reagan a George W. Bush vê o desenvolvimento de uma visão paralela (mas não idêntica) à católica anticomunista de João Paulo II a uma relação de conflito (sedado por ambas as partes por razões de conveniência) com a visão geopolítica do catolicismo na era do choque de civilizações .



O epílogo – "Uma quarta cruzada" – dedica somente poucas páginas ao 11 de setembro de 2001 (dê-se o mérito disso ao autor) e ao "realismo cristão" de Barack Obama, em contraste com os "idealismos" dos seus antecessores, em particular George W. Bush.



Um segundo livro recente que ilumina a questão, com um olhar mais amplo do ponto de vista global e confessional, é Religioni tra pace e guerra [Religião entre paz e guerra], editado por Valter Coralluzzo e Luca Ozzano (Ed. Utet, 2012, 272 páginas). Na primeira parte, concentra-se sobre religião, conflito e peacebuilding, fundamentalismo e terrorismo religiosos, religiões e direitos humanos, religião e União Europeia, religião e globalização, e a relação entre os atores religiosos transnacionais e o Vaticano.



Na segunda parte, dedicada a casos de estudo específicos, analisam-se o papel político da religião nos EUA de Obama, religiões e nacionalismos, Oriente Médio e subcontinente indiano, e religiões e política externa na Ásia do Pacífico.



Vittorio Emanuele Parsi, no prefácio, lembra que assistimos hoje a uma "lenta e progressiva tendência à desocidentalização do sistema político internacional", e esse fato coloca novamente em questão os parâmetros de referência institucionais, culturais e de sentido criados pelo pós-1945.



Ainda mais claramente, na introdução, os dois editores, Coralluzzo e Ozzano, evidenciam a decadência do "postulado westfaliano", ou seja, "a convicção, sufragada pela experiência histórica da Europa no século XVII (a Guerra dos Trinta Anos concluída pelo Tratado de Westfália de 1648), de que a privatização da religião e a secularização da política são uma passagem obrigatória para a consolidação de uma ordem internacional, já que, quando se politiza e se torna um elemento central da política mundial, a religião acaba desencadeando efeitos destrutivos, representando uma séria ameaça à própria existência da sociedade internacional".



Isso nos lembra como "a disciplina acadêmica das relações internacionais foi se consolidando sob a égide incontestável do paradigma da secularização".



Todos sabem que a União Europeia é uma federação de Estados todos surgidos da experiência histórica do cristianismo europeu, mas cuja linguagem oficial é cuidadosamente depurada de todo elemento religioso. A partir de um amplo espectro de forças políticas e intelectuais europeias, de esquerda como de direita (nisso muito distantes das do outro lado do oceano), as temáticas religiosas e inter-religiosas são consideradas não relevantes para o futuro da Europa.



A ilusão de que o livre mercado cria uma Europa alargada, automaticamente pacificada, recalca, a partir de uma margem diferente mas especular, aquela periodização que Aldous Huxley, em Admirável Mundo Novo (1931) definia a respeito do mundo futuro não mais medido pela escorrer dos anos "depois de Cristo" , mas sim "depois de F.", ou seja, depois de Ford.



A hipótese da irrelevância política da religião era um wishful thinking ainda nos anos de crescimento econômico: na Europa da crise financeira, a esperança de que a mistura entre recessão econômica prolongada e exclusão social com base étnico-religiosa não produza efeitos explosivos é um daqueles milagres em que até as elites tecnocráticas são obrigadas a crer.


Fonte: http://www.ihu.unisinos.br/noticias/510616-geografia-de-deus-artigo-de-massimo-faggioli