Dando continuidade às reflexões sobre a centralidade que o
identitarismo assumiu no debate público
nos últimos 50 anos , deparei-me com o livro de Mark Lilla, que trata
justamente desse assunto. Tendo por
subtítulo “Desafios da democracia liberal no mundo pós-políticas identitárias”,
o livro foi escrito sob impacto da ascensão de Donald Trump (2016) e é uma análise crítica sobre as transformações
por que passaram os partidos Republicano e Democrata nos EUA nas décadas
anteriores - sendo assim uma espécie de genealogia necessária para explicar a
polarização que se instalou na sociedade americana. Acaba, também, por realizar um corte analítico
mais amplo sobre as transformações por que passou a cultura política norte-americana.
Principiando sua análise sobre as transformações do Partido
Republicano, Lilla considera que o neo-liberalismo instalado no poder a partir do
governo Reagan (1981) teve por princípio
norteador o individualismo em sua forma mais exacerbada. Esse processo normalizou em uma vasta parcela
da sociedade norte-americana a idéia de atomização dos indivíduos, que é
resumido na seguinte expressão formulada pelo ideólogo de extrema-direita
Grover Norquist:
“Meu cidadão ideal é o sujeito que trabalha por conta
própria, estuda em casa, separa dinheiro para a própria aposentadoria e tem
licença para andar armado. Pois essa pessoa não precisa do maldito governo para
nada.”
Se a Europa Oriental vivia uma efervescência do debate
político após a queda do Muro de Berlim
(1989), a sociedade norte-americana vivia seu oposto: o novo presidente fora
eleito por pessoas que já não viam sentido em discutir o bem-comum e
envolver-se politicamente para tentar realiza-lo.
A nova ideologia, segundo o autor, trazia consigo uma espécie
de catecismo, resumido em quatro fórmulas:
1.
A
boa vida é a vida dos indivíduos autônomos – talvez alicerçados em famílias,
igrejas e pequenas comunidades – mas não cidadãos de uma república com
objetivos comuns e obrigações mútuas;
2.
A
prioridade é acumular riqueza, em oposição à distribuição da mesma;
3.
Quanto
mais livres são os mercados, mais eles crescem e enriquecem todo mundo;
4.
O
governo é o problema, qualquer que seja ele. A idéia de governo é
intrinsecamente nefasta.
Essa ideologia:
· trata como axiomática a primazia da
autodeterminação sobre os vínculos tradicionais de dependência e obrigação.
· Não tem quase nada a dizer sobre as
necessidades naturais das coletividades – das famílias às nações.
· Tem um vocabulário para discutir o
meu e o teu, mas não para invocar o bem comum ou tratar de classes ou outras
realidades sociais.
Ela representou uma profunda ruptura com os 50 anos
anteriores iniciados com o que o autor chama de Dispensação Roosevelt, em
alusão ao New Deal e ao consenso político que se estabelece em resposta à
Grande Depressão e à ameaça do Fascismo
(e, acrescento, do Stalinismo).
Na visão de Roosevelt, quatro liberdades universais haviam
sido declaradas e aceitas como evidentes pela maioria:
1.
Liberdade
de expressão;
2.
Liberdade
religiosa;
3.
Liberdade
de viver sem penúria;
4.
Liberdade
de viver sem medo.
Com efeito, nota o autor, mesmo os republicanos estavam até
então de acordo com as principais linhas do New Deal. (Não por acaso, Nixon
criou uma vasta rede de verbas federais para governos estaduais e locais para
programas sociais, fundou uma importante agência para regular emissões de ar e
água, e outra para regular a saúde e a segurança dos trabalhadores. Tentou
estabelecer uma renda mínima garantida para todas as famílias trabalhadoras e
propôs um plano de saúde nacional que teria fornecido seguros governamentais
para famílias de baixa renda, exigido que empregadores cobrissem todos os
empregados e estabelecido padrões para seguro privado.)
Note-se que o autor não se debruça sobre as razões sociais ou
econômicas que teriam dado origem a tal ruptura, mas se atem sobretudo à esfera
da cultura, concentrando-se nas
transformações ideológicas.
O que teria então levado a uma ruptura tão marcante ?
Aqui ,podemos ler, como complemento, a análise de Steven Levitsky e Daniel Ziblatt , em “Como As Democracias Morrem”, já mencionada em outra postagem
deste Blog, que considera que a quebra do consenso racial ocorrida com
as Leis de Direitos Civis do governo democrata de Lyndon Johnson (1964) foi
talvez a principal razão para a polarização do debate público dentro da
sociedade norte-americana até os dias de hoje.
Por essa interpretação, as normas que sustentam o sistema politico norte-americano
repousavam até os anos 1960/70, em um grau considerável, na exclusão racial.
A estabilidade do período entre o final da Reconstrução e os anos de 1980
estava enraizada num pecado original: o Compromisso de 1877 e suas
consequências, que permitiram a “desdemocratização” do Sul e a consolidação das
leis Jim Crow. A exclusão racial contribuiu diretamente para a civilidade e a
cooperação partidárias que passaram a caracterizar a política norte-americana
no sec. XX.
Ou seja, para aqueles autores, o
consenso politico só fora possível
graças à segregação de boa parte da população.
Para isso, dois acontecimentos foram decisivos.
O primeiro foi o infame Compromisso
de 1877. O pacto acabou efetivamente com a Reconstrução, pois ao retirar as
proteções federais para os afro-americanos , permitiu aos democratas sulistas
anular direitos democráticos e consolidar o domínio de um partido único.
O segundo acontecimento foi o
fracasso do Projeto de lei de Eleições Federais de Henry Cabot Lodge, em 1890,
o qual teria permitido a supervisão federal de eleições legislativas a fim de
garantir a implementação do sufrágio negro. O fracasso do projeto deu fim aos
esforços federais para proteger o direito ao voto dos afro-americanos no sul,
ocasionando, consequentemente, a sua extinção.
Paradoxalmente, portanto, as normas que mais tarde serviriam como
fundação para a democracia norte-americana emergiram de um arranjo
profundamente antidemocrático: a exclusão racial e a consolidação da
predominância de um partido único no Sul.
Depois que democratas e republicanos se aceitaram como rivais legítimos,
a polarização declinou gradativamente, dando origem ao tipo de politica que
caracterizaria a democracia americana nas décadas seguintes. A cooperação
bipartidária viabilizou uma serie de reformas importantes, inclusive a 16
Emenda (1913), que legalizou o IR Federal, a 17 Emenda que estabeleceu a
eleição direta para senadores, a 19 Emenda (1919) que concedeu às mulheres o
direito de voto.
O movimento pelos direitos civis, que culminou com a Lei dos Direitos
Civis em 1964 e a Lei do Direito de Voto em 1965, deu fim a esse arranjo
partidário. Não só ele finalmente democratizou o Sul, emancipando os negros e
acabando com o domínio de um único partido, mas acelerou um realinhamento em
longo prazo do sistema partidário cujas consequências estão se desdobrando
ainda hoje.
Seria a Lei dos Direitos Civis – que o presidente democrata Lyndon
Johnson abraçou e o candidato republicano de 1964, Barry Goldwater, combateu –
que definiria os democratas como o partido dos direitos civis e os republicanos
como o partido do status quo racial.
Nos anos 2000, os partidos Republicano e Democrata já não eram mais
“grandes tendas” ideológicas. Com o desaparecimento dos democratas
conservadores e dos republicanos liberais, as áreas de sobreposição entre os
dois partidos aos poucos desapareceram. E, como a maioria dos senadores e
deputados acabou passando a ter mais em comum com seus aliados partidários do
que com membros do partido de oposição, eles começaram a cooperar com menos
frequência e a votar consistentemente com seu próprio partido. À medida que
tanto eleitores como seus representantes eleitos iam se agrupando em “campos”
cada vez mais homogêneos, as diferenças ideológicas entre os partidos iam se
tornando cada vez mais marcadas. " (from "Como as democracias
morrem" by Steven Levitsky, Daniel Ziblatt, tradução: Renato Aguiar)
Nesse ponto, podemos voltar ao livro de Mark Lilla.
Se, como dizíamos, os republicanos abraçaram sem pudor e com
radicalismo a nova ideologia neo-liberal, no campo oposto, ou seja, no campo
democrata, um outro movimento de matiz diferente ocorria, porém, segundo o
autor, com efeitos igualmente danosos para o debate público (ou melhor,
Político, em seu sentido mais amplo ou, ainda, se preferirem, para o espaço
cívico).
E aqui, parece-me, o autor faz um longo e sinuoso raciocínio
para descrever o que aconteceu no campo liberal-democrata a partir dos anos
1960/70. Nesse percurso, ele principia
em admitir que o liberalismo americano exagerou na dose, “acrescentando a profissão
de fé de que impostos, gastos, regulamentos e decisões judiciais eram sempre a
melhor maneira de alcançar o bem público”.
“Nos anos 1980, havia incontáveis razões para questionar o
pressuposto de que o governo sabia o que estava fazendo e merecia a confiança
do povo – Vietnã, Watergate , impotência diante da estagflação e assim por
diante. Introduziram-se programas demais na Grande Sociedade, com rapidez
desmedida e uma retórica muito elevada.”
Um outro componente muito salientado pelo autor diz respeito
à formação de quadros especificamente treinados para assumir cargos eletivos e
na burocracia. Paradoxalmente, ele localiza o sucesso de tal programa no Partido Republicano e na Nova
Direita – ou seja, justamente entre aqueles que advogam um radical
posicionamento anti-establishment e anti-governo – asseverando que os
liberais-democratas negligenciaram o papel que os think tanks e escolas de
formação de líderes e seminários temáticos teriam a desempenhar no futuro.
Dessa forma, no longo prazo, foram os republicanos e a direita que dominariam a
mídia e se tornariam aptos a convencer o público a votar em seus quadros e a
assumir postos chave na Administração pública e no Congresso.
Os esforços de manipulação do processo eleitoral pelo Partido
Republicano também provocaram consequencias imprevisíveis. Durante anos o
partido canalizara recursos para os legislativos estaduais a fim de redesenhar
distritos congressionais e garantir o controle republicano.
E aqui chegamos naquilo que realmente nos importa e que,
penso, é o núcleo da argumentação do autor, o ponto forte da obra, a
“Pseudopolítica” (Cap.2).
Diante da ofensiva da direita republicana, ultra
individualista, era de se esperar que o campo liberal respondesse com uma visão
mais profundamente coletiva (ou Política). Entretanto, esse campo sofria seu
próprio processo, de natureza inversa: a política identitária – que produziu
efeitos igualmente danosos sobre a esfera pública (ou cívica).
“Eles se perderam no matagal da política identitária e desenvolveram
uma retórica da diferença – ressentida, desagregadora – para competir com ela.”
Num certo sentido, o autor localiza o eixo central desse
processo naquilo que poderíamos chamar de auto-centramento ou mesmo o
nascimento de um modo excessivamente narcisista de ser e estar no mundo, que o
autor localiza nas Universidades seu polo máximo.
“treinaram os alunos para serem exploradores de caverna da
própria identidade, tirando-lhes qualquer curiosidade pelo mundo que há fora de
sua cabeça.”
Dessa forma, haveria, para o autor, uma diferença fundamental
entre a primeira fase dos movimentos de direitos civis – incluindo os movimentos feminista e gay - e a segunda fase,
ocorrida a partir das décadas de 1970 e 1980. A atenção passou a se concentrar
menos na relação entre a identificação com os Estados Unidos como cidadãos
democratas e mais na identificação com diferentes grupos sociais dentro do
país.
“A cidadania desapareceu do mapa”. E o lema de
Kennedy, inspirador da geração dos anos 60, “O que posso fazer pelo meu país?”
foi substituído por “o que meu país me deve em virtude de minha identidade ?”.
Penso que, nesse ponto, o Lilla identifica os primórdios das
bolhas identitárias e ideológicas, também descritas e analisadas por diversos
autores nas análises sobre a mais recente ascensão da extrema-direita. A originalidade então
está em que essas bolhas teriam nascido antes da Internet e do império das
redes sociais.
“E à medida que o interesse lentamente se deslocou dos
movimentos centrados em problemas específicos para os movimentos centrados em
identidade, o foco do liberalismo também se deslocou – do que havia em comum
para a diferença. E o que substituiu a ampla visão política foi uma retórica
pseudopolítica e distintamente americana do indivíduo senciente e sua luta por
reconhecimento. Que acabou não sendo tão diferente da retórica antipolítica
de Reagan do indivíduo que produz e luta por lucro.”
(grifos nossos)
Vemos assim que o espaço cívico sofreu ataques à direita e à
esquerda do espectro político.
A locução mais típica
dessa nova situação é : “Falando como X...”.
Dessa forma,
“Ela ergue uma barreira contra perguntas, que, por
definição, vêm da perspectiva de um não-X. E o encontro se converte numa
relação de poder: o vitorioso da discussão será aquele que invocar a identidade
moralmente superior e expressar mais indignação com as perguntas que lhe forem
feitas.(...) Isso significa que não há espaço imparcial para i diálogo. Homens
bramcos têm uma epistemologia. Mulheres negras têm outra. Se é assim, o que
resta a dizer ?”
“ O que substitui o argumento, então, é o tabu. (...)
Hipóteses revelam-se puras ou impuras e não verdadeiras ou falsas.”
E assim, conclui melancolicamente o autor, identidade é o
reaganismo para esquerdistas.
“Não há uma visão política. Há apenas duas ideologias
individualistas esgotadas e intrinsecamente incapazes de enxergar o bem comum e
unir o país para garanti-lo nas atuais circunstâncias.”
E assim, o autor formula algumas proposições:
1.
Prioridade
da política institucional sobre a política de movimentos: oficinas e seminários
universitários não bastam. Mobilização pela internet e súbita manifestações de
rua não bastam. Não basta protestar, transgredir, extravasar. A era da política
de movimentos acabou, por ora. Não precisamos de mais manifestantes.Precisamos
de mais prefeitos , governadores, legisladores, membros do Congresso...
2.
Prioridade
da persuasão democrática sobre a autoexpressão sem propósito: o identitarismo
caracterizou-se também pela fuga do contato com boa parte do país e com muitas
pessoas cujas opiniões não são exatamente a nossa em todas as questões.
Vejamos. Depoias de 1968, as regras do Partido Democrata foram
significativamente reformuladas, a pretexto de abrir o partido para grupos e
interesses que tinham sido ignorados pelos sindicatos e chefes políticos
locais. A maioria dos historiadores concorda que a consequência involuntária
foi marginalizar os sindicatos operários e os funcionários públicos que haviam
sido os pilares da estrutura partidária, substituindo-os por militantes
instruídos ligados a determinadas questões ou a campanhas presidenciais
particulares. Isso isolou a elite partidária, privando de uma corrente de
transmissão com aquilo que acontecia no restante da sociedade.
3.
Prioridade
da cidadania sobre a identidade grupal ou pessoal: a cidadania é uma arma
crucial na batalha contra o dogma reaganista, porque expressa o fato de que
somos parte de um empreendimento comum legítimo que nós, o povo, trabalhamos
para produzir. Que não somos partículas elementares.
4.
Necessidade
urgente de educação cívica num país cada vez mais individualizado e atomizado.