sexta-feira, 13 de novembro de 2020

Comentário ao livro de Mark Lilla: O Progressista de Ontem e o do Amanhã

 

Dando continuidade às reflexões sobre a centralidade que o identitarismo assumiu  no debate público nos últimos 50 anos , deparei-me com o livro de Mark Lilla, que trata justamente  desse assunto. Tendo por subtítulo “Desafios da democracia liberal no mundo pós-políticas identitárias”, o livro foi escrito sob impacto da ascensão de Donald Trump (2016) e  é uma análise crítica sobre as transformações por que passaram os partidos Republicano e Democrata nos EUA nas décadas anteriores - sendo assim uma espécie de genealogia necessária para explicar a polarização que se instalou na sociedade americana.  Acaba, também, por realizar um corte analítico mais amplo sobre as transformações por que passou a cultura política norte-americana.

Principiando sua análise sobre as transformações do Partido Republicano, Lilla considera que o neo-liberalismo instalado no poder a partir do governo Reagan (1981) teve por  princípio norteador o individualismo em sua forma mais exacerbada.  Esse processo normalizou em uma vasta parcela da sociedade norte-americana a idéia de atomização dos indivíduos, que é resumido na seguinte expressão formulada pelo ideólogo de extrema-direita Grover Norquist:

Meu cidadão ideal é o sujeito que trabalha por conta própria, estuda em casa, separa dinheiro para a própria aposentadoria e tem licença para andar armado. Pois essa pessoa não precisa do maldito governo para nada.

Se a Europa Oriental vivia uma efervescência do debate político após  a queda do Muro de Berlim (1989), a sociedade norte-americana vivia seu oposto: o novo presidente fora eleito por pessoas que já não viam sentido em discutir o bem-comum e envolver-se politicamente para tentar realiza-lo.

A nova ideologia, segundo o autor, trazia consigo uma espécie de catecismo, resumido em quatro fórmulas:

1.     A boa vida é a vida dos indivíduos autônomos – talvez alicerçados em famílias, igrejas e pequenas comunidades – mas não cidadãos de uma república com objetivos comuns e obrigações mútuas;

2.     A prioridade é acumular riqueza, em oposição à distribuição da mesma;

3.     Quanto mais livres são os mercados, mais eles crescem e enriquecem todo mundo;

4.     O governo é o problema, qualquer que seja ele. A idéia de governo é intrinsecamente nefasta.

Essa ideologia:

·       trata como axiomática a primazia da autodeterminação sobre os vínculos tradicionais de dependência e obrigação.

·       Não tem quase nada a dizer sobre as necessidades naturais das coletividades – das famílias às nações.

·       Tem um vocabulário para discutir o meu e o teu, mas não para invocar o bem comum ou tratar de classes ou outras realidades sociais.

Ela representou uma profunda ruptura com os 50 anos anteriores iniciados com o que o autor chama de Dispensação Roosevelt, em alusão ao New Deal e ao consenso político que se estabelece em resposta à Grande Depressão e à ameaça do  Fascismo (e, acrescento,  do Stalinismo).

Na visão de Roosevelt, quatro liberdades universais haviam sido declaradas e aceitas como evidentes pela maioria:

1.     Liberdade de expressão;

2.     Liberdade religiosa;

3.     Liberdade de viver sem penúria;

4.     Liberdade de viver sem medo.

Com efeito, nota o autor, mesmo os republicanos estavam até então de acordo com as principais linhas do New Deal. (Não por acaso, Nixon criou uma vasta rede de verbas federais para governos estaduais e locais para programas sociais, fundou uma importante agência para regular emissões de ar e água, e outra para regular a saúde e a segurança dos trabalhadores. Tentou estabelecer uma renda mínima garantida para todas as famílias trabalhadoras e propôs um plano de saúde nacional que teria fornecido seguros governamentais para famílias de baixa renda, exigido que empregadores cobrissem todos os empregados e estabelecido padrões para seguro privado.)

Note-se que o autor não se debruça sobre as razões sociais ou econômicas que teriam dado origem a tal ruptura, mas se atem sobretudo à esfera da cultura,  concentrando-se nas transformações ideológicas.

O que teria então levado a uma ruptura tão marcante ?

Aqui ,podemos ler, como complemento, a análise de Steven Levitsky e Daniel Ziblatt , em “Como As Democracias Morrem”, já mencionada em outra postagem deste Blog, que considera que a quebra do consenso racial ocorrida com as Leis de Direitos Civis do governo democrata de Lyndon Johnson (1964) foi talvez a principal razão para a polarização do debate público dentro da sociedade norte-americana até os dias de hoje.

Por essa interpretação, as normas que sustentam o sistema politico norte-americano repousavam até os anos 1960/70, em um grau considerável, na exclusão racial. A estabilidade do período entre o final da Reconstrução e os anos de 1980 estava enraizada num pecado original: o Compromisso de 1877 e suas consequências, que permitiram a “desdemocratização” do Sul e a consolidação das leis Jim Crow. A exclusão racial contribuiu diretamente para a civilidade e a cooperação partidárias que passaram a caracterizar a política norte-americana no sec. XX.

 

Ou seja, para aqueles  autores, o consenso politico só fora  possível graças à segregação de boa parte da população.

 

Para isso, dois acontecimentos foram decisivos.

O primeiro foi o infame Compromisso de 1877. O pacto acabou efetivamente com a Reconstrução, pois ao retirar as proteções federais para os afro-americanos , permitiu aos democratas sulistas anular direitos democráticos e consolidar o domínio de um partido único.

O segundo acontecimento foi o fracasso do Projeto de lei de Eleições Federais de Henry Cabot Lodge, em 1890, o qual teria permitido a supervisão federal de eleições legislativas a fim de garantir a implementação do sufrágio negro. O fracasso do projeto deu fim aos esforços federais para proteger o direito ao voto dos afro-americanos no sul, ocasionando, consequentemente, a sua extinção.

Paradoxalmente, portanto, as normas que mais tarde serviriam como fundação para a democracia norte-americana emergiram de um arranjo profundamente antidemocrático: a exclusão racial e a consolidação da predominância de um partido único no Sul.

 

Depois que democratas e republicanos se aceitaram como rivais legítimos, a polarização declinou gradativamente, dando origem ao tipo de politica que caracterizaria a democracia americana nas décadas seguintes. A cooperação bipartidária viabilizou uma serie de reformas importantes, inclusive a 16 Emenda (1913), que legalizou o IR Federal, a 17 Emenda que estabeleceu a eleição direta para senadores, a 19 Emenda (1919) que concedeu às mulheres o direito de voto.

 

O movimento pelos direitos civis, que culminou com a Lei dos Direitos Civis em 1964 e a Lei do Direito de Voto em 1965, deu fim a esse arranjo partidário. Não só ele finalmente democratizou o Sul, emancipando os negros e acabando com o domínio de um único partido, mas acelerou um realinhamento em longo prazo do sistema partidário cujas consequências estão se desdobrando ainda hoje.

 

Seria a Lei dos Direitos Civis – que o presidente democrata Lyndon Johnson abraçou e o candidato republicano de 1964, Barry Goldwater, combateu – que definiria os democratas como o partido dos direitos civis e os republicanos como o partido do status quo racial.

 

Nos anos 2000, os partidos Republicano e Democrata já não eram mais “grandes tendas” ideológicas. Com o desaparecimento dos democratas conservadores e dos republicanos liberais, as áreas de sobreposição entre os dois partidos aos poucos desapareceram. E, como a maioria dos senadores e deputados acabou passando a ter mais em comum com seus aliados partidários do que com membros do partido de oposição, eles começaram a cooperar com menos frequência e a votar consistentemente com seu próprio partido. À medida que tanto eleitores como seus representantes eleitos iam se agrupando em “campos” cada vez mais homogêneos, as diferenças ideológicas entre os partidos iam se tornando cada vez mais marcadas. " (from "Como as democracias morrem" by Steven Levitsky, Daniel Ziblatt, tradução: Renato Aguiar)

 

Nesse ponto, podemos voltar ao livro de Mark Lilla.

Se, como dizíamos, os republicanos abraçaram sem pudor e com radicalismo a nova ideologia neo-liberal, no campo oposto, ou seja, no campo democrata, um outro movimento de matiz diferente ocorria, porém, segundo o autor, com efeitos igualmente danosos para o debate público (ou melhor, Político, em seu sentido mais amplo ou, ainda, se preferirem, para o espaço cívico).

E aqui, parece-me, o autor faz um longo e sinuoso raciocínio para descrever o que aconteceu no campo liberal-democrata a partir dos anos 1960/70.  Nesse percurso, ele principia em admitir que o liberalismo americano exagerou na dose, “acrescentando a profissão de fé de que impostos, gastos, regulamentos e decisões judiciais eram sempre a melhor maneira de alcançar o bem público”.

“Nos anos 1980, havia incontáveis razões para questionar o pressuposto de que o governo sabia o que estava fazendo e merecia a confiança do povo – Vietnã, Watergate , impotência diante da estagflação e assim por diante. Introduziram-se programas demais na Grande Sociedade, com rapidez desmedida e uma retórica muito elevada.”

Um outro componente muito salientado pelo autor diz respeito à formação de quadros especificamente treinados para assumir cargos eletivos e na burocracia. Paradoxalmente, ele localiza o sucesso de tal  programa no Partido Republicano e na Nova Direita – ou seja, justamente entre aqueles que advogam um radical posicionamento anti-establishment e anti-governo – asseverando que os liberais-democratas negligenciaram o papel que os think tanks e escolas de formação de líderes e seminários temáticos teriam a desempenhar no futuro. Dessa forma, no longo prazo, foram os republicanos e a direita que dominariam a mídia e se tornariam aptos a convencer o público a votar em seus quadros e a assumir postos chave na Administração pública e no Congresso.

Os esforços de manipulação do processo eleitoral pelo Partido Republicano também provocaram consequencias imprevisíveis. Durante anos o partido canalizara recursos para os legislativos estaduais a fim de redesenhar distritos congressionais e garantir o controle republicano.

E aqui chegamos naquilo que realmente nos importa e que, penso, é o núcleo da argumentação do autor, o ponto forte da obra, a “Pseudopolítica” (Cap.2).

Diante da ofensiva da direita republicana, ultra individualista, era de se esperar que o campo liberal respondesse com uma visão mais profundamente coletiva (ou Política). Entretanto, esse campo sofria seu próprio processo, de natureza inversa: a política identitária – que produziu efeitos igualmente danosos sobre a esfera pública (ou cívica).

Eles se perderam no matagal da política identitária e desenvolveram uma retórica da diferença – ressentida, desagregadora – para competir com ela.”

Num certo sentido, o autor localiza o eixo central desse processo naquilo que poderíamos chamar de auto-centramento ou mesmo o nascimento de um modo excessivamente narcisista de ser e estar no mundo, que o autor localiza nas Universidades seu polo máximo.

treinaram os alunos para serem exploradores de caverna da própria identidade, tirando-lhes qualquer curiosidade pelo mundo que há fora de sua cabeça.”

Dessa forma, haveria, para o autor, uma diferença fundamental entre a primeira fase dos movimentos de direitos civis – incluindo os  movimentos feminista e gay - e a segunda fase, ocorrida a partir das décadas de 1970 e 1980. A atenção passou a se concentrar menos na relação entre a identificação com os Estados Unidos como cidadãos democratas e mais na identificação com diferentes grupos sociais dentro do país.

A cidadania desapareceu do mapa”. E o lema de Kennedy, inspirador da geração dos anos 60, “O que posso fazer pelo meu país?” foi substituído por “o que meu país me deve em virtude de minha identidade ?”.

Penso que, nesse ponto, o Lilla identifica os primórdios das bolhas identitárias e ideológicas, também descritas e analisadas por diversos autores nas análises sobre a mais recente  ascensão da extrema-direita. A originalidade então está em que essas bolhas teriam nascido antes da Internet e do império das redes sociais.

E à medida que o interesse lentamente se deslocou dos movimentos centrados em problemas específicos para os movimentos centrados em identidade, o foco do liberalismo também se deslocou – do que havia em comum para a diferença. E o que substituiu a ampla visão política foi uma retórica pseudopolítica e distintamente americana do indivíduo senciente e sua luta por reconhecimento. Que acabou não sendo tão diferente da retórica antipolítica de Reagan do indivíduo que produz e luta por lucro.

(grifos nossos)

Vemos assim que o espaço cívico sofreu ataques à direita e à esquerda do espectro político.

A locução  mais típica dessa nova situação é : “Falando como X...”.

Dessa forma,

Ela ergue uma barreira contra perguntas, que, por definição, vêm da perspectiva de um não-X. E o encontro se converte numa relação de poder: o vitorioso da discussão será aquele que invocar a identidade moralmente superior e expressar mais indignação com as perguntas que lhe forem feitas.(...) Isso significa que não há espaço imparcial para i diálogo. Homens bramcos têm uma epistemologia. Mulheres negras têm outra. Se é assim, o que resta a dizer ?

O que substitui o argumento, então, é o tabu. (...) Hipóteses revelam-se puras ou impuras e não verdadeiras ou falsas.”

E assim, conclui melancolicamente o autor, identidade é o reaganismo para esquerdistas.

Não há uma visão política. Há apenas duas ideologias individualistas esgotadas e intrinsecamente incapazes de enxergar o bem comum e unir o país para garanti-lo nas atuais circunstâncias.”

E assim, o autor formula algumas proposições:

1.     Prioridade da política institucional sobre a política de movimentos: oficinas e seminários universitários não bastam. Mobilização pela internet e súbita manifestações de rua não bastam. Não basta protestar, transgredir, extravasar. A era da política de movimentos acabou, por ora. Não precisamos de mais manifestantes.Precisamos de mais prefeitos , governadores, legisladores, membros do Congresso...

2.     Prioridade da persuasão democrática sobre a autoexpressão sem propósito: o identitarismo caracterizou-se também pela fuga do contato com boa parte do país e com muitas pessoas cujas opiniões não são exatamente a nossa em todas as questões. Vejamos. Depoias de 1968, as regras do Partido Democrata foram significativamente reformuladas, a pretexto de abrir o partido para grupos e interesses que tinham sido ignorados pelos sindicatos e chefes políticos locais. A maioria dos historiadores concorda que a consequência involuntária foi marginalizar os sindicatos operários e os funcionários públicos que haviam sido os pilares da estrutura partidária, substituindo-os por militantes instruídos ligados a determinadas questões ou a campanhas presidenciais particulares. Isso isolou a elite partidária, privando de uma corrente de transmissão com aquilo que acontecia no restante da sociedade.

3.     Prioridade da cidadania sobre a identidade grupal ou pessoal: a cidadania é uma arma crucial na batalha contra o dogma reaganista, porque expressa o fato de que somos parte de um empreendimento comum legítimo que nós, o povo, trabalhamos para produzir. Que não somos partículas elementares.

4.     Necessidade urgente de educação cívica num país cada vez mais individualizado e atomizado.