segunda-feira, 27 de abril de 2009

O mistério do pequeno Buda desaparecido






Neste sábado, completaram-se os 20 anos de Panchen Lama, a segunda autoridade espiritual do budismo tibetana, o "vice" do Dalai Lama. Mas Gedhun Choeky Nyima – esse é o seu verdadeiro nome – é invisível desde os seus seis anos, quando foi raptado com toda a sua família pela polícia chinesa, tornando-se o prisioneiro político mais jovem do mundo. A sua culpa: encarnar a autonomia espiritual do Tibete.

A reportagem é de Raimondo Bultrini, publicada no jornal La Repubblica, 25-04-2009. A tradução é de Moisés Sbardelotto.

Às vésperas do aniversário proibido, os chineses espalharam o rumor da sua morte – que os exilados tibetanos afirmam ser falso – e lançaram o seu substituto de regime, o Panchen de Pequim.

É Gyaincain Norbu, quase coetâneo do outro (tem 19 anos), tibetano mas filho de dois membros do partido comunista. Em 1995, depois da captura do verdadeiro Panchen, foi investido solenemente pelo regime e levado a um lugar seguro em Pequim por medo de que fosse influenciado pelos tibetanos, que nunca o aceitaram. Indoutrinado pelo partido, ultimamente intensificaram-se as suas saídas públicas.



Ninguém é capaz de dizer se Gedhun Choekyi Nyima soube das manifestações que, no mundo inteiro, ocorrem todo o dia 25 de abril, o dia do seu aniversário, para pedir a sua libertação de uma prisão que já dura 14 anos. O 10º Panchen do Tibete, escolhido pelo Dalai Lama, teria hoje 20 anos, e tinha só seis quando desapareceu do seu vilarejo de Lhari, na província de Nanghu in Amdo, junto com sua mãe, seu pai e seu irmão mais velho.

Era maio de 1995, poucos dias depois da nomeação que o tornara célebre em todo o mundo. A adivinhação para escolha do número dois do budismo foi realizada pelo atual líder tibetano na sua residência de exílio em Dharamsala, na Índia, no início daquele ano. Depois de alguns rituais elaborados, fez girar três bolinhas de tsampa – farinha de cevada tostada – dentro de uma grande caixa aberta, até que o mesmo nome, inscrito em um minúsculo pedaço de papel misturado na farinha, saltou para fora por três vezes: Ghedun. Rapidamente, as primeiras lendas dele começaram a circular, começando pelo milagre ocorrido no ventre, quando recitou um mantra sagrado à sua mãe.

Mas Pequim certamente não se deixou comover pela onda de emoção que atravessou todo o Tibete. Reagiu à notícia mobilizando todo o seu aparato institucional. Cinquenta emissários chegaram a Tashilungpo, histórica sede dos Panchen desde o século XVII, e fizeram prender o Lama que tinha efetuado os reconhecimentos de acordo com as indicações de Dharamsala, Chadrel Rinpoche. No seu lugar, colocaram um leigo que tinha participado das históricas e cruéis reuniões de "autocrítica" contra o décimo Panchen durante a Revolução Cultural, quando a emanação do "Buda de Luz Infinita Amithaba" (esse é o título do Panchen) foi obrigado a apodrecer nas prisões chinesas.

Depois, prepararam uma nova lista de meninos entre os quais estava o filho de dois militantes do Partido de nome Gyiancain e fizeram com que fosse aprovada pelos fiéis Lama. Muitos se recusaram, mas, no oitavo dia do ano Porco de Madeira (29 de novembro de 1995), entre prostrações aos Budas e cerimônias, uma urna dourada, que tem um valor histórico importantíssimo para a China, foi posta de frente aos altares. Ela foi doada pelos Regentes do Tibete por um imperador manchu no século XVIII, justamente para que fossem colocadas no seu interior não as comuns bolinhas de tsampa, mas bastonetes de marfim com a mesma função adivinhatória: a escolha do Dalai e do Panchen Lama.

Segundo fontes de dissenso, naquele dia de 14 anos atrás, um dos três bastonetes era mais longo, para facilitar a tarefa do sacerdote que teria que retirá-lo da urna de ouro. Gyiancain – afirma-se – já estava pronto atrás de uma tenda para fazer o seu aparecimento na sala do templo e receber a investidura formal, diante do Lama, dos dirigentes do partido e dos membros do governo.

Nos mesmos dias, o pobre Ghedun sofria um destino muito diferente e ainda hoje misterioso, tornando-se o prisioneiro político mais jovem do mundo. Sabemos apenas que, se ainda estivesse vivo, hoje teria realizado uma tarefa de todo o respeito, talvez a mais alta, na disputa de dez anos que contrapõe tibetanos e chineses. Contrariamente ao que muitos são levados a acreditar, é o Panchen Lama que detém o primado espiritual do Tibete, pois foi a sua divindade emanadora Amithaba que irradiou de Conhecimento, e de poder temporal, o progenitor do Povo das Neves, chamado pelos tibetanos de Cenrezi (encarnado no atual Dalai Lama). Não por acaso os seus símbolos são os do Sol e da Lua, ou do Pai e do Filho, imprescindíveis um ao outro. O Dalai nomeia o novo Panchen e vice-versa. Por isso, obscurecendo o Sol (o Panchen), a China pretende, sem metáforas, privar a Lua-Dalai do seu poder.

Mas, para os tibetanos, o Panchen de Pequim nunca será o verdadeiro, e um dia – estão certos disso – o Pai e o Filho se reunirão para derrotar, com a sua união, as forças do Mal que se inserem como uma gigantesca sombra entre os dois astros.




Fonte: http://www.unisinos.br/_ihu/index.php?option=com_noticias&Itemid=18&task=detalhe&id=21761

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Nota do Blog:

Após publicar a postagem acima, recebi o seguinte comentário de nosso leitor, Hermeticum (a quem agradeço), que reconheceu algumas incorreções no texto acima:

"Quero simplesmente fazer um reparo ao que parece-me ser um lapso teu.

"Neste sábado, completaram-se os 20 anos de Panchen Lama, a segunda autoridade espiritual do budismo tibetana, o "vice" do Dalai Lama."

Na verdade, o Panchen Lama não é a "segunda" ou "vice" autoridade de nada. O Panchen Lama é o Mestre espiritual do próprio Dalai Lama. É como se o coração do Budismo Tibetano tivesse duas faces: uma externa ou politica, personificada na figura do Dalai Lama (sim, Dalai Lama), e outra face mais espiritual ou mistica, personificada no Panchen Lama.A história de ser o Dalai Lama a "escolher" o Panchen Lama também não é correcta. O Dalai Lama reconhece (a encarnação d)o Panchen Lama. Fica o reparo.

quinta-feira, 23 de abril de 2009

O Deus exilado



(Matérias extraídas do Blog Holosgaia)

Os cristãos gnósticos são o tema do livro ‘Deus Exilado’, escrito por professora da USP.

A história do Cristianismo no mundo se divide entre perseguidos e perseguidores. A intolerância com a fé alheia promoveu - e ainda promove - muitos levantes e massacres ao longo dos séculos. Guerras civis em nome da religião sufocaram muitos credos em nome um totalitarismo cristão, baseado em dogmas impostos pela maioria. Mas houve um tempo em que as crenças cristãs eram bem mais pluralistas do que hoje; nessa época, aceitavam-se todas as opiniões sobre o quê e quem era Deus. A Palavra era interpretada ao modo de quem nela acreditava, gente simples ou de posses.



Esse período e seus principais personagens - os cristãos gnósticos que viveram nos três primeiros séculos de nossa era - são o tema do livro Deus Exilado (Civilização Brasileira; 272 páginas; R$ 39,00), escrito pela professora de história da filosofia e doutrinas políticas da Escola de Comunicação e Arte da USP, Marília Fiorillo.


Chamados pela autora de “anarquistas espirituais”, os cristãos gnósticos, segundo ela, eram “livres-pensadores discípulos de Jesus e se consideravam Seus genuínos seguidores, cristãos de verdade e opositores dos ‘falsos crentes’ (futuros católicos)”.


De acordo com Marília Fiorillo, os gnósticos eram "extremamente influentes no Egito, na Síria e na Ásia Menor, populares e incômodos o suficiente a ponto de desencadearem a primeira campanha anti-herética da Igreja que apenas engatinhava".


A existência dessa seita do Cristianismo foi confirmada pela descoberta nos anos 1970 dos manuscritos da biblioteca de Nag Hammadi, pequena localidade no Egito, e que continha os evangelhos gnósticos. “Foi uma reviravolta na história oficial, que os ignorava e os tratava como hereges tardios”, afirma a professora.


Doutora em História Social, Marília Fiorillo foi buscar na Ciência o rastro da seita cujos seguidores pensavam muito diferente dos cristãos que os sucederam. Documentos paleográficos “provaram que o cristianismo primitivo, o dos três primeiros séculos, quase nada tinha em comum com aquela doutrina exclusivista e excludente transformada em religião oficial pelo imperador Constantino no século IV, e logo tornada religião única e obrigatória do Império Romano”, afirma a autora.


Segundo o livro da professora da USP, os cristãos gnósticos foram sendo dizimados ao longo dos séculos e desapareceram por completo na Idade Média, pelas mãos do papa Inocêncio III. Foi ele quem promoveu a Cruzada Albigense, que queimou vivos tantos “bons homens” como os gnósticos eram conhecidos na época.


A barbárie em nome de um credo único foi tanta que cidadelas inteiras foram queimadas, mesmo depois que seus moradores já haviam se rendido ao Catolicismo. A Igreja não poderia deixar rastro do pensamento irreverente dos gnósticos.


Na apresentação da publicação, a autora diz que o livro é "para gente desconfiada. Para quem desconfia que há muita história que nos foi subtraída, não por odiosa conspiração dos vencedores, mas porque a versão do vencido se perde no rastro da história".


A autora afirma também que Deus Exilado pode ser um livro "para quem está preocupado com o avanço do fundamentalismo religioso, que intoxica o mundo de modo tão ecumênico, infiltrando-se em todos os cantos do planeta".



Entrevista com Marília Fiorillo

Quando e em que circunstâncias surgem os primeiros movimentos gnósticos?

Falar em gnosticismo é o mesmo que falar em cristianismo primitivo, pois os cristãos gnósticos surgem com os primeiros grupos de seguidores de Jesus, já em finais do século I , e são praticamente os primeiros e únicos no Egito e na Síria oriental (que, com Antioquia e Roma, eram as metrópoles da nova religião), até o século IV. Isto ficou comprovado pela descoberta recente dos manuscritos de Nag Hammadi, e dos Evangelhos de Maria e de Judas, que, apesar de encontrados em locais diferentes, fazem parte de uma mesma "biblioteca" gnóstica, isto é, trazem uma versão própria e diferente do que as comunidades então acreditavam ter sido a mensagem do fundador Jesus. Pode-se dizer que este livro trata de uma revisão histórica, ao dar voz aos perdedores da primeira batalha dentro do cristianismo, revelando fatos e ideários que não foram registrados na história oficial da Igreja. Esta, aliás, os combateu desde o princípio, e os derrotou de vez assim que a facção de Roma -a dos futuros católicos- ganhou a simpatia do imperador Constantino e se tornou a religião oficial do império romano.A descoberta de um rico e vasto material sobre as comunidades gnósticas permitiu a divulgação, e reinterpretação, de uma outra versão sobre os primórdios do cristianismo. È interessante como esta questão das versões é atualíssima, e está em pauta, por exemplo, no principal episódio de política internacional que ocupou as manchetes nos últimos dias: os acontecimentos dramáticos que têm ocorrido na Faixa de Gaza. A versão oficial de Israel é a da legítima defesa; a versão de vários governos tem sido a de que se trata de um ataque desproporcional; já a versão do comissariado de direitos humanos da ONU, da Cruz Vermelha, da Anistia Internacional, da Human Rights Watch e de outras organizações humanitárias , após a divulgação dos últimos acontecimentos, é a de que se trata de um crime de guerra. A perseguição aos gnósticos foi brandíssima, mesmo tímida, se comparada ao atual massacre da população civil palestina. Mas em ambos os casos a história acaba se tornando a versão daquele que vence, daquele que ficou, ou ficará, para contá-la com autoridade ou legitimidade.

Quais são as principais questões que mobilizam seus integrantes, e quais os principais ramos que se desenvolvem?

Uma das principais características do gnosticismo é sua pluralidade. Eles divergem dos ortodoxos - aqui entendidos como os futuros católicos, "futuros" pois, até o século IV, ninguém poderia dizer ao certo quem era "orto", isto é, "reto", e quem era "hetero", isto é "diferente", pois as doxas (isto é, opiniões, no caso sobre o cristianismo) se equilibravam em número de adesões, importância e popularidade. Isto fica claro quando lembramos que dois dos expoentes gnósticos do século II, Valentino e Marcion, concorreram ao mais alto cargo de bispo inclusive em terreno alheio, isto é, Roma.Assim, os gnósticos divergem mesmo entre si, e muito: há os que acham que a ressurreição foi só simbólica (os docéticos) e os que crêem que foi real, material; há aqueles simpáticos a certas passagens da Torá hebraica e os que a repudiam veementemente; os que acham que Jesus era um sábio, ou um anjo, ou um mestre ou a própria divindade.Neste oceano de divergências compartilhadas eles têm, porém, três princípios em comum:
1) o de que o caminho para a salvação se faz pela gnose, ou conhecimento direto e individual de Deus, e não pela fé em algo transmitido por terceiros;
2) a idéia de que conhecer Deus é se conhecer, isto é, que cada pessoa possui uma faísca do divino em si; e
3) uma certa insolência ou arrogância que se revela tanto no estilo de seus evangelhos como no menosprezo que devotam aos opositores ortodoxos, para eles uns "tolos" e "falsos cristãos".

Como se dá o diálogo entre esses pensadores e o cristianismo?

Na verdade esses pensadores –pregadores, lideranças ou escritores- são tão cristãos quanto os que ficaram com o título. O diálogo e debate é intenso e feroz, eles se acusam mutuamente (de ímpios ou tolos) e há mesmo autores que dizem ser impossível imaginar a Igreja sem eles, pois eram a sombra uns dos outros, tamanha a competição, e em pé de igualdade. Dois padres da Igreja escreveram profusamente sobre eles no segundo século, Irineu de Lyon e Tertuliano de Cartago –este último foi tão zeloso em sua campanha que seu purismo acabou levando-o a ser excomungado pela própria Igreja.
Quando Irineu e Tertuliano acusam os gnósticos de "serpentes, escorpiões, devassos", o que lhes incomoda são principalmente dois traços de seus adversários: a imaginação (muitas vezes desenfreada ), e a audácia.
A principal acusação de Irineu era a de que os gnósticos não possuíam "o medo de Deus em seus corações". Para este primeiro teólogo da Igreja, o medo da punição divina era o que forjava um bom cristão, e como os gnósticos não pareciam movidos a medo, sugeriu que o melhor método para tratar estes adversários internos era "ferir fundo a besta".
A principal crítica de Tertuliano -além de seu horror ao "despudor" das mulheres que participavam como iguais dos cultos gnósticos- era que estes "dissidentes" misturavam platonismo, isto é, filosofia, com cristianismo, e se permitiam a veleidade de pensar como bem entendiam. A "humanidade" (sic) com que os gnósticos se tratavam, assim como o "atrevimento" de suas mulheres , além da mania petulante deles de "perguntar sobre tudo" eram, segundo Tertuliano, vícios imperdoáveis.
Mas o mais interessante, agora que se pode ler na íntegra as idéias contidas nos manuscritos gnósticos, é notar o quanto a teologia dita ortodoxa nasceu, na verdade, de um empréstimo das idéias gnósticas, viradas do avesso. Por mais que Irineu e Tertuliano abominassem a imaginação gnóstica, foi nela que beberam. A teologia ortodoxa nasce como uma teologia da refutação, em que os éons dos gnósticos foram transformados em anjos, a ignorância (para os gnósticos, fonte de todo mal) virou pecado e a questão do sofrimento humano foi equacionada no livre-arbítrio.




Em que o gnosticismo pode ser importante para as reflexões contemporâneas?

Em uma palavra: no amor à liberdade. Os gnósticos eram ridicularizados e atacados por seus oponentes tanto por seu "excesso de imaginação" , isto é, pela livre interpretação que faziam da mensagem cristã (um de seus críticos dizia que eles empilhavam doutrinas como quartos de aluguel, e que havia tantos gnosticismos quanto membros de uma congregação), quanto por sua excessiva tolerância –eles admitiam que mulheres virassem bispos, adotavam o sistema de funções em rodízio, e achavam que o contato com Deus era direto e não precisava da intermediação de uma casta sacerdotal. A principal lição destes anarquistas espirituais é o elogio da convivência, o gosto pela diferença, e uma profunda antipatia por dogmas e autoridades auto-proclamadas. Numa época como a nossa, em que os fundamentalismos religiosos de todos os matizes ganham terreno, o gnosticismo é uma rara e feliz mostra de que, certa vez, foi possível conciliar o ímpeto pelo sagrado com a autonomia e liberdade de cada indivíduo, deixando os assuntos de Deus a cargo e competência de cada um, em vez de excluir, perseguir e matar coletivamente em Seu nome.

Fontes:

http://oglobo.globo.com/blogs/prosa/...st=154712&a=96

e

http://www.cristianismohoje.com.br/artigo.php?artigoid=37075


(Matérias extraídas do Blog HolosGaia)

sexta-feira, 17 de abril de 2009

A importância do Xamanismo


O xamã (a palavra é de origem tungusiana) não é o mesmo que curandeiro, feiticeiro ou mágico, encontráveis em todos os grupos primitivos até os tempos de hoje. É, na verdade, um tipo especial de indivíduo que sobrevive entre alguns caçadores do Norte da Sibéria e entre os esquimós, e que deixou vestígios na Austrália e na África.

É um homem que combina funções e habilidades que no mundo contemporâneo se divorciaram umas das ou­tras; é simultaneamente sacerdote, médico e artista. Con­forme pode ser comprovado pela arte dos xamãs atuais, muitas das mais antigas pinturas rupestres franco-cantábricas são "xamanistas" — isto é, produzidas por xamãs e derivadas de sua maneira de pensar. Para compreender essas pinturas é necessária, portanto, uma explicição mais precisa do que é o xamã.

Entre vários povos primitivos, xamã e curandeiro pre­enchem funções idênticas e usam idênticas técnicas psico­lógicas, mas cada qual tem caráter e mentalidade comple­tamente diferentes. O curandeiro surge em todos os grupos primitivos, quase sem exceção. Sua função é, antes e aci­ma de tudo, a de médico, mas possui também posição fim; portanto dentro do grupo. Freqüentemente se encontra no pólo oposto ao do chefe. Às vêzes ambas as funções são exercidas pelo mesmo indivíduo. Na maioria dos casos, seu papel ultrapassa o do médico e se aproxima do exer­cido pelo pastor ou sacerdote — ou pelo psicólogo de hoje.

O xamã também desempenha as funções de padre e médico, mas, ao contrário do curandeiro, age sempre em estado de transe auto-induzido. Quando conjura espíri­tos ou faz tentativas de cura, jamais opera em estado de inteira lucidez e, sim, em êxtase. Encontram-se, portanto, em relação ao xamã, fenômenos psíquicos, tais como tele­patia, clarividência, desaparecimentos e reaparecimentos misteriosos etc. Para o curandeiro, essas atividades per­tencem mais ao reino da mistificação. São exercidas a fim de sublinhar o efeito da sugestão sôbre o auditório. O xamã, por outro lado, experimenta todos êsses fenômenos psicológicos com grande intensidade, em sua própria pes­soa. No curandeiro é possível perceber um inconfundível desejo de poder. O xamã, porém, é uma personalidade mais complexa. Em vários casos, torna-se o que é, não por von­tade própria, mas porque é forçado, impelido pelo sen­timento de que é essa a sua vocação. O xamã exerce grande influência sôbre os que o rodeiam, e sua função social é sem dúvida a de lhes controlar e preservar o equilíbrio psicológico, mas desempenha-a, não em busca de poder, mas como resultado de seu próprio desenvol­vimento psicológico.

As diferenças psicológicas entre curandeiro e xamã são encontradas no decurso dos acontecimentos que os levam a adotar suas respectivas funções, nas diferenças entre suas personalidades, em sua atitude em relação ao mundo que os rodeia e nas diferentes técnicas que usam para influir sobre o meio. Finalmente, há o fato de que o xamã é muitas vezes um artista em atividade — cantor, dan­çarino, decorador ou ensaiados —, funções que o curandeiro não desempenha. O xamã com freqüência assume involuntàriamente seus deveres. Parece estar sob pressão, de que só escapará tornando-se xamã. Narrativas sibe­rianas tornam bem claro que o futuro xamã não sente nenhum desejo consciente para exercer tal ofício, mas é forçado a isso "pelos espíritos" e finalmente acede, para não perecer. O jovem xamã em formação é um homem doente. Sofre de perturbações psicóticas ou epiléticas, além de ser fisicamente enfermo. Apesar de freqüentes tentativas para fugir às exigências que sobre ele fazem os espíritos, não o consegue, o que lhe agrava cada vez mais a condição doentia. Encontra-se, então, num dilema que só pode solucionar morrendo ou assumindo o ofício de xamã.

Em termos correntes, sofre de uma psicose progressiva, que o compele a adotar uma atitude mental e um modo de agir estabelecidos pela tradição, ou então perecer. A psicose pode ser tão séria que chegue realmente a destruí-]o, se não for curado a tempo. O processo de cura considerado uma forma de morte e renascimento. O xamã em potencial pressente como o espírito o dilacera, consome e mata. Durante a cura, sente as diversas partes de seu corpo reunirem-se novamente e vê restaurar-se sua personalidade. A psicose de que sofrem tais pessoas deve ter longa história. Em data muito remota, os homens já devem ter descoberto meios de curá-la e devem ter dado a esses meios certas formas tradicionais. Em contraste com o curandeiro, que assume sua profissão como indi­víduo saudável, ávido de poder, o xamã, a principio, surge como inválido, que precisa atravessar determinado pro­cesso de desenvolvimento antes de curar-se. As suas fun­ções sociais desenvolvem-se, por assim dizer, como um auxiliar desse processo de cura. E são essas funções sociais, naturalmente, que o tornam tão significativo para o grupo ao qual presta assistência. A cura, que se trans­forma num transe prolongado, se bem que freqüentemente interrompido, é incorporada à tradição religiosa local. Nesse estado de inconsciência, o xamã vê mentalmente imagens, e a tradicional cosmologia de sua comunidade, sua mitologia, assume em seu espírito uma nova forma artística e poética. Determinadas formas e estilos podem ser atribuídos à influência do xamanismo, e certos mé­todos e técnicas, tais como o drama, a dança, a recitação de odes e o uso de máscaras, provàvelmente se originaram, em grande parte, do processo de auto-cura a que o xamã em potencial teve de se submeter.

Os membros da tribo consideram-no alguém que, em transe, pode separar a "alma" do corpo pela força de sua vontade e viajar para o "outro mundo" ou para o "além", onde cria (num plano psicológico) pré-requisitos neces­sários à ocorrência de fatos no mundo real. O xamanismo, como técnica e como atitude mental, deve ter-se de­senvolvido num tempo em que o homem não mais se sentia unido à natureza numa entidade orgânica, e se tornara consciente de uma existência física e mental in­dependente. Vigorosas experiências psíquicas começaram a surgir, não como acidente pessoal, mas como projeções de espíritos estranhos, invisíveis ao comum dos mortais, e que se supunha haverem tomado posse do corpo do xamã. Em terminologia antropológica, os xamãs são clas­sificados como “sacerdotes frenéticos". O fenômeno do frenesi só ocorre no estágio do desenvolvimento humano em que o indivíduo não se encontra ainda inteiramente cônscio do efeito de seus próprios processos mentais. O conceito de uma alma capaz de se separar do corpo, continuar a viver depois da morte e mais tarde ser no­vamente dotada de um corpo é de fundamental significa­ção no surgimento do xamanismo. Tanto os homens como os animais dispunham de uma alma, sujeita às mesmas leis que regiam a separação e a reencarnação. A magia dos povos caçadores primitivos, que é de origem muito an­tiga, baseia-se inteiramente na idéia de que a alma dos animais pode ser aprisionada e morta. Segue-se daí que os animais podiam ser mortos pelos mesmos meios.

A fim de garantir o êxito de suas expedições de caça, o xamã transporta-se, ou mais exatamente, manda sua alma para outro mundo, enquanto "seu corpo fica como morto". Ali, ou ele caça espíritos de animais, ou negocia com a "senhora dos animais", espírito a quem toda a fauna deve submissão. Desenhos, poemas e danças, tudo serve ao xamã como meio para descrever sua viagem ao além. O segredo da magia propiciatória da caça consiste na mímica. A expedição bem sucedida é mentalmente visualizada, com antecipação, pelo xamã, e representada com tal convicção que quando os caçadores partem nem sequer concebem a possibilidade de um fracasso. Ao per­seguirem e abaterem a presa, estão dotados da segurança dos sonâmbulos. O xamã tem o poder de afastar doenças e acidentes, tanto quanto possível, através de influência sobre a atitude psicológica do paciente. Essa influência,exercida sobre o bem-estar de seus companheiros de tribo, consiste em despertar entre eles sentimentos de autocon­fiança, ou a absoluta convicção em seu imediato sucesso.

Muita atenção se tem dado, com razão, ao papel social do xamã como mágico, sacerdote e médico. Suas realiza­ções artísticas, porém, talvez sejam mais importantes, senão do ponto de vista social, pelo menos do individual. São logicamente vitais para a compreensão das pinturas rupestres. Todo o processo de se tornar e agir como xamã é essencialmente um processo de criação artística. Para começar, um inválido cura-se desenvolvendo as habilida­des artísticas latentes. Em seguida, sua eficácia social consiste em repetir o processo à vontade, em ocasiões específicas. Principia caindo em transe, para o que usa diversos meios, geralmente o som repetido e monótono de um tambor, acompanhado de movimentos de dança. Perdendo consciência, dá expressão à sua mente criativa subconsciente.

O xamã pode representar vividamente a cosmologia da comunidade aos que o rodeiam. Parece também que, em transe, é capaz de transferir com mais facilidade aos doentes físicos e mentais o poder de curar que adquiriu. Nesse estado cria imagens mentais e acredita achar-se em comunicação com os espíritos, visualizando a mudança de seu plano de consciência como uma '`viagem para o além". Os “espíritos" ou a "viagem" nunca são concebi­dos como manifestações de seu ser pessoal. A "comunica­ção com os espíritos" parece ser uma ativação de re­giões da consciência que ele não consegue pôr em jogo em estado normal. Isto é, evidentemente, uma técnica psí­quica, provàvelmente de origem muito recuada, ainda a ser redescoberta pelos psicólogos de hoje, e que aparentemente é remédio muito antigo para estados depres­sivos de espírito.

Nossos conhecimentos do xamanismo são em geral ba­seados em narrativas oriundas da Sibéria e da América do Norte, mas, uma vez que se defina o xamã como al­guém que só pode agir em transe, o fenômeno torna-se muito mais geral. Parece ocorrer em quase tôdas as re­giões onde sobreviveram, até há bem pouco, culturas caçadoras primitivas: entre os esquimós, os lapões do Norte da Escandinávia, na América do Sul e do Norte, em várias partes da África e no Extremo Noroeste da Austrália.


Fonte: A Arte Pré-Histórica e Primitiva, Andréas Lommel, diretor do Museu de Etnologia de Munique, Livraria José Olympio Editora.



Extraído do Blog Holosgaia

quarta-feira, 15 de abril de 2009

Origem dos atos


Por: Chogyam Trungpa

A ligação entre pequenos pensamentos e grandes pensamentos é muito importante. Por exemplo, dramas repentinos - como assassinar alguém ou provocar imenso caos - começam no nível de conceitos minúsculos e pequeninas flutuações de atenção. Algo grande está sendo ativado por algo bem pequeno.

A primeiro indicação de desgosto ou atração por alguém eventualmente evolui e termina em uma escala muito maior de drama emocional. Então tudo começa em uma escala minúscula, no começo, e então se expande. [...] Embora emoções sejam aparentemente bastante pesadas, extensas e viscerais, elas tem origem em movimentos sutis que acontecem em nossa mente constantemente. [...] Vivenciamos o surgimento de tais pensamentos agora mesmo, e todo tempo.

Ver esse padrão é possível para pessoas que estejam praticando meditação e estudando os ensinamentos, que são abertas e se intrigam. Se você tem praticado, você de algum modo está cru e aberto, o que é bom. Ser capaz de lidar com as sutilezas das variações mentais se liga ao princípio de prestar atenção a todas atividades em doses menores que fazemos.


Chogyam Trungpa (Tibete, 1939 - Canadá, 1987)
"The Power of Flickering Thoughts"
em "The Truth of Suffering and The Path of Liberation"
(Ocean of Dharma Quotes of the Week, 06/03/2009)


Pensamento que vira obsessão


Por: Dilgo Khyentse Rinpoche

Para tomar a fortaleza não-criada da natureza da mente, você precisa ir à fonte e reconhecer a exata origem de seus pensamentos. Do contrário, um pensamento fará surgir um segundo, então um terceiro e por aí vai. Rapidamente, você será assaltado pelas memórias do passado e pela ansiedade quanto ao futuro, e o puro estado desperto do momento presente será completamente obscurecido.

Há uma história sobre um praticante que estava alimentando pombos com o arroz que tinha oferecido em seu altar, quando subitamente se lembrou dos numerosos inimigos que tinha antes de se devotar ao Dharma. Um pensamento surgiu para ele: "Há tantos pombos em minha porta agora. Se eu tivesse isso tudo de soldados naquela época, poderia facilmente ter eliminado meus inimigos".

Essa idéia o obcecou até que ele não pôde mais controlar sua hostilidade e deixou seu retiro. Reuniu um bando de mercenários e foi guerrear com seus antigos inimigos. As ações negativas que ele cometeu depois começaram todas com um simples e iludido pensamento.

Se você reconhecer a vacuidade de seus pensamentos, ao invés de solidificá-los, o surgimento e desaparecimento de cada um irá clarear e fortalecer sua realização da vacuidade.