quinta-feira, 22 de janeiro de 2009

Lamas e Xamãs


Por: Julio Cesar Guerrero / Nuvem que Passa



Sempre lembrando...
Não esqueçam de ver o sorriso despreocupado nestas palavras.

Escrever idéias tem a limitação de passar termos sem os tons de voz, expressões faciais e corporais e tantos outros sinais subliminares que numa conversa pessoal ajudam a entender melhor o que já é um esforço concentrado expressar pela fala.

Tenho notado em algumas listas que participei que trocas de idéias produtivas rapidamente se perdem no jogo de egos que insistimos muitas vezes em nos entregar.

Gostaria de partilhar com vocês esta observação quanto a este limite da comunicação virtual.

Assim, na busca do correto falar, ou ainda do reto falar, fica colocada esta sinalização quanto a leitura das mensagens.

Temos que ter o cuidado para não projetarmos nossas interpretações pessoais, mas tentar nos descentrarmos, como diria Piaget, nos desegotizarmos, sairmos da posição do "eu"' e entender o outro, a outra perspectiva da realidade que nos é apresentada como real e efetiva.

É sempre bom lembrar que nunca há a intenção de agressividade nestas colocações. Por vezes palavras incisivas podem aparentar tal efeito, mas é mera aparência. O objetivo principal é sempre o mesmo. Melhorar a qualidade das perguntas. As respostas por vezes interrompem o diálogo. Compreender cada povo e cada cultura, cada forma de expressão da vida. Não como os pseudoecumênicos fazem, com seus sorrisos compreensivos, mas secretamente sentindo-se superiores e mais salvos . Vi isso aos montes nos pastores e padres "progressistas" junto as tribos que vivi.

Sinto que pode ter ficado parecendo que aludi ao budismo tibetano como algo confuso. De forma alguma. Tenho um profundo respeito pelo budismo tibetano desde o dia que no centro cultural Vergueiro, participando da mandala da cura, realizada por lamas, vi nos olhos dos que conversei uma pureza diferente. Assim quaisquer que sejam as jangadas que usem para auxiliar na travessia rumo a outra margem, tem algo de paz , algo que já vi em alguns monges cristãos, alguns sufis , alguns xamãs.

Quando aprendi na prática que não importa o caminho, desde que ele tenha coração. Para mim isso significa que os lamas possuem um caminho que leva ao despertar efetivo. Como curiosidade antropológica me permitam compartilhar como minha linhagem de xamãs vê os lamas.

Espero que entendam que não é de forma alguma uma visão desrespeitosa. É uma visão alternativa, uma interpretação do tema.

Alguns dos estrangeiros, isso é, não índios, como eu, que se ligaram a essa linhagem de xamãs que sou ligado eram taoistas, hsien, eremitas que vivendo em peregrinação foram ter a Tailândia e arredores, onde a civilização que ali florescia tem tal semelhança com a do período olmeca e anteriores que ainda instiga os pesquisadores. Dali vieram ter ao México e contaram da prática de monges poderosos que viviam no alto das neves eternas. Tais monges eram curadores e conheciam muitas formas de magia. Eles tinham desenvolvido um profundo conhecimento da natureza da vida e da consciência. Eles sabiam que se um ser humano desenvolvesse durante a vida a consciência de si haveria chance de prosseguir existindo. Caso contrário apenas se dissolveria como a espessa névoa vai com o vento ao meio da manhã, dissipar-se pela mata, toda e, ao meio dia, nem lembrança dela restará àquele que por ela atravessou quando o dia nascia e ainda carpe o pasto, tudo roçando, carpe, mas não carpie die.

Contavam que tais monges em grandes mosteiros sabiam que as experiências, os jeitos de ser, de sentir, de pensar, de agir, iam de um ser para outro, se misturando em tramas e depois se separando, como se um tapete fosse tecido, depois desfeito e sua lã aproveitada em outros tapetes, cada cor em um diferente. Cada novo tapete gera uma forma final, um novo e único tapete, mas sua lã veio de outro tapete. E eis que certo dia um tapete acorda e diz: Hoje sonhei que fui um tapete em frente a vasta lareira do imperador. E se sente orgulhoso por isso. Ele tem algo do tapete da lareira do imperador.

Os monges descobriram isso com sua clarividência.

Mas eles não eram mais o tapete da lareira do imperador. Podiam até mesmo usar o que traziam de aprendizado dali. Mas era um novo tapete, único e singular. E podia até mesmo se lembrar de muitos outros tapetes que as várias cores de lãs que o compunha haviam antes composto.

Feito e desfeito, até o distante dia que cada lã daquela foi pela primeira vez fiada, pela primeira vez cardada. A distante roca original que pegou a lã cardada e fez fio, fio que tecido e retecido em tantos tapetes esteve e o tapete, resultante dos fios ainda perplexo confunde-se com eles, negando-se tapete. Descobriram também que quanto mais se trabalha o ser, mais lãs juntas vão de tapete a tapete e em certos casos chega a ocorrer uma autêntica reencarnação, um tapete é desfeito e refeito com a mesma lã. Ainda assim a resultante é única, distinta.

Pois é isso que o tapeceiro, incriado a criar tapetes, busca, revelar-se a si mesmo, despertar-se no que desperta.

Tais monges passaram então a ir em busca daqueles que treinavam. Numa vida um monge treinava. Ao morrer os monges seguiam sinais e encontravam várias fibras do antigo companheiro.

Para explicar às pessoas o que faziam usaram conceitos mais simples como reencarnação.

Tais monges podem ser os antepassados espirituais dos lamas tibetanos.

Em outros contos a similitude é ainda maior. Percebem que é uma forma de ver o processo acontecendo. Apenas uma hipótese de trabalho a mais.

Como comentei antes a questão fundamental para nossa época é como auxiliar a restaurar em cada ser uma profunda gentileza para com a vida a sua volta, para consigo. Todo mais são instigantes histórias, maneiras, mas só isso.

Restaurar a sensibilidade dos seres humanos é algo imperativo a nossa sobrevivência enquanto espécie. E com o poder de destruição evidente, é a sobrevivência de todo o planeta que está em risco.

Paz Profunda!!!



(Fonte: http://www.imagick.org.br/pagmag/guerreir/lamas.html)

O medo como fonte da razão




O MEDO COMO ORIGEM DA RAZÃO EM ADORNO E HORKHEIMER: o papel de Nietzsche na Dialética do Esclarecimento

Por: Márcio Benchimol Barros
(Professor de Filosofia da Unesp de Araraquara)


Assim como Habermas em O Discurso Filosófico da Modernidade, também Albrecht Wellmer em seu artigo Adorno, Advogado do não-Idêntico [1] interpreta a Dialética do Esclarecimento de Adorno e Horkheimer como um empreendimento filosófico ao mesmo tempo corajoso e arriscado no qual de pontos-de-vista anti-iluministas de determinados pensadores seriam utilizados criticamente no sentido de uma radicalização do esclarecimento, agora voltado sobre si mesmo. Asim, filosofias que a tradição marxista costumava considerar como exemplos do conservadorismo e decadência burgueses são integradas em uma continuação do próprio impulso da crítica ideológica de inspiração marxista. Em especial, ambos procuram demonstrar a influência de Nietzsche na elaboração da obra.

Habermas e Wellmer também estão de acordo quanto ao que constitui o essencial desta influência: a tese do entrosamento profundo entre razão e dominação, pensado não como meramente exterior ou contingente, mas como constitutivo da razão. Habermas, no texto citado, aponta Nietzsche como o precursor desta tese, a qual conduziria à destruição de todas as possibilidades de distinção entre pretensões de validade e pretensões de poder. Por seu turno, Wellmer considera a identificação entre razão e dominação na Dialética do Esclarecimento como resultado de uma leitura de Marx por Adorno e Horkheimer através da ótica de uma crítica do conhecimento,...com os olhos de Nietzsche e Kant.., bem como de uma leitura materialista de Kant [2]. Wellmer chama a atenção para a origem nietzscheana da …tese central de Adorno e Horkheimer, a tese da unidade da racionalidades formal e instrumental no pensamento conceitual… [3], a qual permitiria a referida leitura de Marx.

Tendo em vista a utilização que faremos, no decorrer do texto, das noções de racionalidade formal e racionalidade instrumental, tais como são conceituadas por Wellmer, reproduzimos abaixo as descrições de ambas presentes em Adorno, Advogado do não-Idêntico:

A racionalidade formal se exterioriza como impulso à constituição de contextos de saberes, explicações e atividades sistematicamente unificados e isentos de contradição. [4]

Já a racionalidade instrumental é descrita no seguinte período:

A tese propriamente forte de Adorno e Horkheimer, porém, é a de que a racionalidade formal é, em última análise, equivalente (gleichbedeutend) à racionalidade instrumental, ou seja, equivalente a uma racionalidade “coisificante” ("verdinglichende"), cuja meta é o controle de processos naturais e sociais. [5]

A atenção e profundidade com que Habermas e Wellmer tratam a tese de Adorno e Horkheimer a respeito do que constitui a essência do esclarecimento – a saber, a dominação – tem entretanto como contrapartida o fato de que ambos deixem intacta a tese apresentada pelos autores acerca da origem do esclarecimento.

Essa origem, como também da própria razão, é indicada claramente já na frase inicial do texto O Conceito de Esclarecimento:

No sentido mais amplo do progresso do pensamento, o esclarecimento tem perseguido sempre o objetivo de livrar os homens do medo e investi-lo na posição de senhores [6].

O esclarecimento tem origem no sentimento do medo, e como reação a este sentimento. Seu objetivo primordial é antes de tudo livrar os homens do medo. É, de fato, apenas como meio que a dominação também aparece nesta sentença de abertura, da qual o seguinte trecho pode ser lido como uma confirmação e um desenvolvimento:

Do medo o homem presume estar livre quando não há mais nada de desconhecido. É isso que determina o trajeto da desmitologização e do esclarecimento, que identifica o animado ao inanimado, assim como o mito identifica o inanimado ao animado. O esclarecimento é a radicalização da angústia mítica. A pura imanência do positivismo, seu derradeiro produto, nada mais é que um tabu, por assim dizer, universal. Nada mais pode ficar de fora, porque a simples idéia do "fora" é a verdadeira fonte da angústia... [7]

Aqui, não somente a eliminação do medo aparece como determinante de toda a trajetória do esclarecimento, mas o esclarecimento, é, ele mesmo, identificado ao medo [8] . O sentido desta última formulação, mais forte que as anteriores, é o de que o esclarecimento, mesmo em sua forma mais acabada, continua sendo resultado e expressão do medo, sendo exatamente este o motivo pelo qual ele jamais chega a atingir seu objetivo.

Ora, a tese que faz do medo a origem do pensar racional nos parece revelar um outro aspecto da influência nitzscheana na Dialética do Esclarecimento, o qual não foi desenvolvido por Habermas e Wellmer. No que se segue, procuraremos explicitar os motivos pelos quais nos acreditamos autorizados a levantar tal hipótese.

Comecemos pois por perguntar qual o sentido do conceito de medo tal como ele aparece em Dialética do Esclarecimento. Um sentido certamente presente neste conceito é o do medo ante a todos aqueles processos e forças naturais – seja antropomorfizados pelo animismo, seja apreendidos pelo pensamento científico esclarecido – que permanecem ainda não dominados, incontroláveis e imprevisíveis. O medo diante de tudo o que ainda não se curvou ao domínio técnico do homem e que o faz, por isso mesmo, sentir-se indefeso, pois se apresenta como ameaça à conservação da vida humana em geral. É como reação a este sentimento que Adorno e Horkheimer procuram estabelecer a gênese e a necessidade de uma racionalidade instrumental voltada para a dominação da natureza.

Quanto ao problema da gênese do aspecto formal da razão no pensamento de Adorno e Horkheimer, vimos que Wellmer procura compreender o impulso à construção de sistemas unitários e internamente consistentes como decorrente do caráter instrumental da racionalidade. A tese que lhe permite estabelecer tal dependência é aquela na qual a Dialética do Esclarecimento atribui já ao próprio conceito uma natureza instrumental, tese essa na qual Wellmer identifica uma origem nitzscheana [9].

Assim, unindo a argumentação de Wellmer à tese do medo como origem da razão, chagaríamos à seguinte explicação para o surgimento da racionalidade formal: O medo às forças hostis da natureza torna necessária a dominação; esta necessidade, por seu turno, gera o conceito como instrumento de dominação; e o princípio da não contradição, contido na essência do pensar conceitual, engendra o impulso à lógica e à sistematização.

Embora não haja como discutir a pertinência da análise de Wellmer a este respeito, acreditamos poder encontrar na Dialética do Esclarecimento uma segunda componente do conceito de medo a partir da qual é possível pensar de uma maneira alternativa, na referida obra, a gênese da racionalidade formal. Esta segunda via não está, como se verá, em contradição com aquela exposta acima, mas possui para nós o interesse especial de pôr em relevo aquele aspecto da influência nietzscheana na Dialética do Esclarecimento que estamos procurando indicar.

A componente do conceito de medo à qual nos referimos se encontra apresentada no seguinte trecho:

...Concretiza-se assim o mais antigo medo, o medo da perda do próprio nome. Para a civilização, a vida no estado natural puro, a vida animal e vegetativa, constituía o perigo absoluto. Um após o outro, os comportamentos mimético, mítico e metafísico foram considerados como eras superadas, de tal sorte que a idéia de recair neles era associada ao pavor de que o eu revertesse à mera natureza, da qual se havia alienado com esforço indizível e que por isso mesmo infundia nele indizível terror [10].

Trata-se aqui não mais do medo do indivíduo ante ao que ameaça a sua sobrevivência, mas do medo da dissolução dos limites da individualidade, da identificação imediata com a natureza e da regressão a estágios mais primitivos, o qual é exponenciado pela poderosa sedução que esta mesma identificação com a natureza representa para o indivíduo:

O esforço para manter a coesão do ego marca-o em todas as suas fases, e a tentação de perdê-lo jamais deixou de acompanhar a determinação cega de conservá-lo… O medo de perder o eu e o de suprimir com o eu o limite entre si mesmo e a outra vida … está irmanado a uma promessa de felicidade, que ameaçava a cada instante a civilização [11].

Este mesmo medo está presente em muitas das interpretações dadas pela Dialética do Esclarecimento paras as aventuras de Ulisses. A sedução das sereias, dizem os autores, é a de se deixar perder no que passou [12], e quem prova da comida dos lotófagos, sucumbe como os que escutam as sereias ou como os que foram tocados pela varinha de Circe...A única ameaça é o esquecimento e a destruição da vontade [13]. Depois de ter logrado Polifemo, Ulisses precisa declarar seu nome e sua origem ao ciclope, pois teme que, por ter-se declarado ninguém, volte a ser ninguém caso não restaure sua identidade [14]. A magia de Circe …desintegra o eu que volta a cair em seu poder e assim se vê rebaixado a uma espécie biológica mais antiga [15].

Neste ponto, a linha de nossa argumentação impõe-nos uma dupla tarefa: é preciso, por um lado, explicitar que relação pode haver entre o medo da dissolução da individualidade e o surgimento de uma racionalidade formal; e, por outro, indicar de que maneira tal relação pode ser índice de influência nietzscheana na Dialética do Esclarecimento.

Ora, não vemos melhor caminho para o cumprimento destes objetivos do que recordarmos as teses de O Nascimento da Tragédia, nas quais a tendência lógica e sistemática se encontra paradigmaticamente relacionada ao medo da supressão da distância entre indivíduo e natureza.

Nietzsche, por Munch



Em sua primeira obra, com efeito, Nietzsche faz o êxtase dionisíaco consistir na anulação dos limites da individualidade e na identificação imediata com a natureza. O supremo prazer provocado por esta identificação e a irresistível sedução que ela por isso mesmo exerce constituem temível ameaça ao princípio de individuação (principium individuationis), entendido – em uma variação da reinterpretação schopenhaueriana deste terminus escolástico – como o impulso fundamental pelo qual a vida tende a abandonar sua unidade primordial para fixar-se em unidades viventes mais ou menos estáveis e permanentes, ou seja, em indivíduos. O pavor experimentado pelo indivíduo ante a eminência da dissolução dos limites que o separam da natureza e a revelação extática da unidade profunda de todos os viventes não é senão a expressão da profunda contradição existente entre a tendência dionisíaca e aquele princípio vital essencial.

É esta contradição o que termina por gerar aquela poderosa força cultural que conhecemos como espírito apolíneo, o qual, como expressão do principio de individuação na cultura, destina-se a conter o avanço da tendência dionisíaca. Em O Nascimento da Tragédia podemos acompanhar como o impulso apolíneo helênico, a fim de alcançar este objetivo, cria a mitologia grega, com todo o seu panteão de divindades olímpicas, e a arte escultórica clássica, na qual estas divindades são representadas; vemos ainda como faz vir à luz o esplendor da arquitetura dórica e finalmente o drama clássico, que, irmanado à música dionisíaca, instaura finalmente na Tragédia ática um equilíbrio de forças entre Apolo e Dionísio.

Mas este equilíbrio acaba por revelar-se precário e momentâneo, pois ainda quando a Tragédia vivia seu auge, o princípio de individuação – abandonando o âmbito apolíneo, no interior do qual se movera até então – obtém, por meio da filosofia socrático-platônica, a vitória final sobre a tendência dionisíaca. É esta filosofia que entroniza pela primeira vez o conceito, a lógica e o impulso à construção de sistemas, inaugurando assim o espírito científico, nova força cultural que haveria de dominar os rumos da civilização ocidental. A partir de então a sobriedade da razão e a exigência de absoluta coerência interna, clareza e transparência de um pensar que busca constantemente a mais perfeita auto-consciência são os elementos que banirão definitivamente as tendências extáticas e orgiásticas do horizonte grego, velando assim pela estrita observância dos limites entre indivíduo e natureza.

Ora, se nos dispomos a traçar uma analogia entre a descrição nietzscheana da atuação do princípio de individuação na cultura – através do espírito apolíneo e da tendência socrática-científica – e a imagem da evolução do esclarecimento traçada por Adorno e Horkheimer certamente teremos ocasião de perceber alguns claros pontos de contato. Pois o processo pelo qual o indivíduo se emancipou da natureza, e com isso forjou para si uma identidade rígida e unitária é elemento essencial na descrição da trajetória do esclarecimento realizada pelos autores frankfurtianos.

De fato, se o conteúdo essencial da mimesis é a identificação com a natureza, o processo pelo qual ela é substituída pela ratio, que é o seu outro, pode ser descrito como o processo de distanciamento do sujeito em relação à natureza. A noção de distanciamento e interposição está implícita na própria noção de instrumento, e portanto, do conceito enquanto instrumento:

É verdade que a representação é só um instrumento. Pensando, os homens distanciam-se da natureza a fim de torná-la presente de modo a ser dominada…Pois o pensamento se torna ilusório sempre que tenta renegar sua função separadora, de distanciamento e objetivação [16].

Este distanciamento é descrito por Adorno e Horkheimer como o processo no qual simultâneamente a natureza é liberada de toda antropomorfização mítica e o sujeito de tudo o que ele tem de natureza. O esclarecimento, ao mesmo tempo em que elimina a identificação mítica do inanimado ao animado, identifica o animado ao inanimado, de onde resulta a atrofia tanto do sujeito quanto da natureza:

É à identidade do espírito e a seu correlato, à unidade da natureza, que sucumbem as múltiplas qualidades. A natureza desqualificada torna-se a matéria caótica para uma simples classificação, e o eu todo-poderoso torna-se o mero ter, a identidade abstrata [17].

Como o eu idêntico só se constitui por oposição à natureza da qual ele se distancia, os conceitos de eu e de natureza determinam-se e limitam-se reciprocamente. As exigências de unidade e identidade do sujeito pressupõem que o objeto se submeta também à unidade e à identidade. Ao eu penso transcendental corresponde como seu correlato necessário uma realidade que, segundo a expressão de Wellmer, compõe-se … de fenômenos interligados causalmente segundo leis, e isto quer dizer: uma realidade como objeto de um conhecimento possível das ciências naturais. [18]. Trata-se de uma realidade na qual tudo é a priori passível de ser subsumido pelas categorias fixas do entendimento. Todo ente é exemplar de uma espécie e todo evento é um caso especial e repetição de uma lei eterna.

A conseqüência imediata deste conceito de natureza é o ideal do sistema que procura abranger num todo coerente a extensão inteira da realidade, afirmando ao mesmo tempo a lógica formal como esquema da calculabilidade do mundo:

De antemão o esclarecimento só reconhece como ser e acontecer o que se deixa captar pela unidade. Seu ideal é o sistema do qual se pode deduzir toda e qualquer coisa [19].

Poderíamos então concluir que é a preocupação com preservação da unidade e da identidade do sujeito o que torna indispensável o projeto iluminista do enquadramento de todo o real pelo pensar lógico e sistemático; e é para atingir este objetivo que o esclarecimento instaura um tribunal permanente contra tudo aquilo que parece oferecer resistência a um tal enquadramento. O que não se deixa enquadrar pelo sistema e deduzir pela lógica é aquilo que ainda não caiu sob o poder do pensamento conceitual, e, por isso mesmo, é algo que ainda não se submeteu às condições únicas pelas quais pode haver a separação entre sujeito e objeto. Precisamente isto, o incomensurável, ou, como dirá Adorno posteriormente, o não-idêntico, é o que não pode ser tolerado pelo esclarecimento, pois ele vê aí uma sobrevivência do tempo em que o eu não havia se emancipado da natureza e um sinal de que a emancipação ainda não se completou de todo. Aí o esclarecimento reconhece uma região do espírito esclarecido na qual ainda pode subsistir o medo mais antigo, do qual ele sempre quis livrar os homens, o da confusão entre os limites do individuo e da natureza. O esclarecimento só pode estar seguro de ter vencido definitivamente o medo quando o esquema da deductibilidade universal tiver compreendido sem resto todo o real, e sua grande astúcia é declarar este projeto como já realizado de antemão, pelo menos em potência. Este é o sentido, de acordo com nossa interpretação, das expressões de Adorno e Horkheimer segundo as quais o homem presume estar livre do medo quando não há mais nada de desconhecido, e nada mais pode ficar fora, uma vez que a própria idéia do fora é a verdadeira fonte da angústia. Neste sentido, expressão fora significaria aqui aquela região exterior ao círculo delimitado pelo saber científico esclarecido, a qual o esclarecimento declara nula a priori. E é justamente por ser estabelecida a priori que a pura imanência do positivismo – ou seja, a identificação da realidade com aquilo que pode ser apreendido pela matemática e a eliminação de toda a transcendência – assume o caráter de tabu assinalado por Adorno e Horkheimer.

Se são aceitas as linhas gerais da aproximação por nós intentada entre a Dialética do Esclarecimento e O Nascimento da Tragédia, seria possível estendê-la ainda de modo a estabelecer uma relação entre a tese nietzscheana que faz a criação da mitologia e da religião consistir em uma reação ao perigo representado à civilização pela tendência dionisíaca e a tese frankfurtiana que afirma terem os deuses como nome as vozes petrificadas do medo [20], e, portanto, que aquilo com o que o esclarecimento historicamente se bate já é esclarecimento. Da mesma forma, poder-se-ia ver uma influência nietzscheana na tese segundo a qual o produto derradeiro do esclarecimento, a mimese ao inanimado, é exatamente o oposto do seu objetivo original, ou seja, a preservação da vida. Pois em Nietzsche, de fato, o impulso à lógica e ao conceito, assim como o impulso apolíneo, tem como finalidade tornar possível a vida, na medida em que esta pressupõe a constituição de uma subjetividade idêntica e estável. No entanto, a hipostasiação inexorável deste impulso resulta na atrofia da vida através da anulação paulatina do elemento instintivo dionisíaco, que é o substrato vital dos sujeitos cujas vidas deviam ser preservadas.

Mas faremos mais justiça ao pensamento frankfurtiano se concluirmos estas linhas com a ressalva de que embora seja possível encontrar muitos pontos de contato entre a Dialética do Esclarecimento e a filosofia nietzscheana, não se pode pretender ver na obra de Adorno e Horkheimer uma simples adesão àquela filosofia. A Dialética do Esclarecimento sabe se preservar da sedução nietzscheana e utiliza conscientemente Nietzsche em um esforço de continuação da melhor tradição do materialismo histórico, e na perspectiva do desmascaramento da falsidade contida nas formas de pensamento engendradas pela prática social.

Se muito se pode dizer a respeito da influência de Nietzsche na referida obra, outro tanto se pode afirmar sobre a influência do pensamento marxista, e muito de sua importância se deve à própria originalidade dos autores. E um dos traços mais marcantes desta originalidade é certamente a combinação inusitada e, para muitos improvável, conseguida por eles entre duas das filosofias que mais definiram os caminhos do pensamento no nosso século.

BIBLIOGRAFIA:

Adorno e Horkheimer, Dialética do esclarecimento, Rio de Janeiro, J. Zahar Editor, 1985

Adorno e Horkheimer, Dialektik der Aufklärung. Gesammelte Schriften, Bd.3, Frankfurt, Suhrkamp,1984.

Wellmer, Adorno, Anwalt des Nicht-Identischen, in: Zur Dialektik von Modernen und Post-Modernen, Vernunftkritik nach Adorno, Frankfurt/Main, Suhrkamp, 1885

Nietzsche, Die Geburt der Tragödie, Berlin- New York, W. de Gruyter, 1972

Habermas, The Philosophical Discourse of Modernity, Cambridge, Polity Press, 1992

Gagnebin, Jeanne Marie, Do Conceito de Razão em Adorno.

segunda-feira, 19 de janeiro de 2009

Não percamos tempo



Certo dia, durante uma tempestade, um asceta chamado Utia veio visitar o Buda. Ananda condizui-o até a choupana e apresentou-o a Sidarta. O homem foi convidado a sentar-se, e Ananda ofereceu-lhe uma toalha para que pudesse se secar.




Utia perguntou: " Monge Gautama, o mundo é eterno ou irá perecer algum dia ?"




O Buda sorriu e disse: "Asceta Utia, com sua licença, não vou responder a esta questão."




Utia, então, perguntou: "O mundo é finito ou infinito ?"




"Declino de responder a esta questão também."




"Bem, então o corpo e o espírito são um ou dois?"




"Também não responderei a esta questão."




"Após sua morte, voce continuará a existir ou não?"




"Esta questão também não vou responder."




"Ou talvez voce sustente que, após sua morte, nem continuará a existir, nem cessará de existir."




"Asceta Uscita, não responderei a tal questão igualmente."




Utia olhou perplexo. Ele disse: "Monge Gautama, voce se recusou a responder a todas as minhas perguntas. Qual questão responderia ?"




O Buda asseverou: "Só respondo questões diretamente ligadas à prática de alcançar a maestria em relação à mente e corpo, a fim de superar todas as preocupações e ansiedades."




"Quantas pessoas neste mundo voce imagina que seu ensinamento pode ajudar?"




O Buda ficou sentado em silêncio. Utia não disse mais nada.






(...)






Poucos dias mais tarde, um outro asceta, chamado Vachagota, veio vê-lo e fez questionamentos de natureza similar. Por exemplo, ele perguntou: "Monge Gautama, voce poderia, por favor, dizer-me se há ou não um eu?"




O Buda sentou em silêncio e não disse uma palavra. Depois de várias indagações sem receber retorno, Vachagota levantou e saiu. Após ter partido, Venerável Ananda agüiu: "O Senhor fala acerca do não-eu em suas palestras-Dharma. Por que não respondeu às questões de Vachagota acerca do eu?"




O Buda respondeu: "Ananda, o ensinamento sobre a vacuidade do eu faz sentido enquanto guia para nossa meditação. Ele não deve ser tomado como uma doutrina. Se as pessoas o tomarem como doutrina, acabarão enredadas por ela. Tenho dito, com freqüência, que o ensinamento deveria ser considerado como uma canoa que é útil para atravessar até a outra margem, ou como o dedo que aponta para a lua.



Não devemos nos deixar aprisionar pelo ensinamento. O asceta Vachagota desejava que eu lhe dissesse a ele que há um eu, isso contradiria meu ensinamento. Se dissesse a ele, porém, que não há um eu, e ele se fixasse nisso como sendo uma doutrina, tal não lhe traria qualquer benefício. É melhor permanecer em silêncio do que responder essas perguntas. É melhor que as pessoas pensem que não sei a resposta para tais questões do que serem apanhadas nas armadilhas da visão estreita."








(Extraído do livro de Thich Nhat Hanh, "Velho Caminho, Nuvens Brancas - Seguindo as Pegadas do Buda, trad. Enio Burgos)




quinta-feira, 15 de janeiro de 2009

Comprar, comprar, comprar? Uma irresponsabilidade, diz especialista



Leia abaixo alguns trechos de entrevista concedida por Marilena Lazzarini ao jornal O Estado de S.Paulo:

Uma das criadoras do Procon em 1976 e do Instituto Brasileiro de Defesa do Consumidor (Idec) dez anos depois, Marilena Lazzarini sugere que o mundo se localize, antes de fazer a roda girar intensamente no padrão atual.
“Esse modelo de consumo desregulado falhou, e estimulá-lo parece uma loucura.” Seria acelerar um automóvel com defeito, tendo no banco do passageiro um cidadão mal informado pelas empresas, mal amparado pela legislação e com tendência ao superendividamento. Como para toda crise há uma contrapartida, ela ressalta, nesta entrevista, o ensejo de investir no ambiente. “A crise ambiental é muito mais grave do que a financeira.” Seria oportuno correr, diz ela, antes de a natureza cobrar a conta.

Eis um trecho dessa entrevista.



Qual é nosso modelo de consumo?

É muito uma cópia do modelo americano, mas nos EUA é exacerbado. O brasileiro vai gastar o que não pode para comprar um tênis de marca, uma calça, que basicamente são todos iguais, exceto pela etiqueta. Esses jovens vão se matar ou matar alguém para ter aquele artigo. Os modelos não são mais difundidos pela vizinhança. Antigamente, havia uma similitude na comunidade. Hoje, não. Os padrões entram nas casas pela televisão. Só que esse modelo de consumo desregulado falhou, e estimulá-lo parece loucura. Imagine que você está dirigindo um automóvel com um defeito. Em vez de parar o carro, põe o pé no acelerador. Estimular a população a consumir tem correlação com essa situação. Pedem que a população acelere e vá em frente. Ela vai acabar num abismo, vai se arrebentar.

O que poderia ser feito então?

Rever o modelo. É necessária uma regulamentação nacional e internacional. Esses mercados financeiros são vaso-comunicantes. Isso está sendo discutido pelo G-20, mas há uma resistência a assumir a necessidade de regular o mundo financeiro. Também acho que o governo brasileiro deveria direcionar políticas públicas que favorecessem o mercado interno. Ele muitas vezes é desprezado como potencial de desenvolvimento. Por que não uma produção de alimentos sustentável? O transporte de alimentos cruzando o país é um gasto de combustível absurdo. A produção ficaria perto do consumidor.

Que outras oportunidades a crise oferece?

Para mim, a postura que mais teria sentido no momento seria enfrentar a crise financeira com a ambiental. Acho que a crise ambiental é muito mais grave do que a financeira, só que não afeta o bolso de imediato. Vivemos um modelo que valoriza muito a economia. Isso ficou desconectado da sociedade. O pacote para ajudar a indústria automobilística, por exemplo, poderia ter sido em parte direcionado ao transporte público. Você não estaria tirando dinheiro do mercado, mas movimentando a economia em outro segmento. Geraria emprego, manteria o mercado aquecido, mas com direção estratégica, voltado para a questão climática. Hoje, com essa enorme parcela de pessoas marginalizadas, o modelo de consumo voraz não se sustenta. Com mais países subindo de padrão, como está ocorrendo, aí é que não cabe mesmo. Os habitantes da Índia e da China vão querer imitar o padrão consumista, algo absolutamente inviável, ainda mais porque a engenharia genética ainda não conseguiu clonar a Terra. Somente assim para ter tanto recurso natural. O tempo para conseguir mitigar esse desgaste ambiental está diminuindo. Talvez a crise até ajude nesse sentido. Se diminuir o consumo mundial, podemos espaçar esse intervalo e ganhar fôlego.

O que passa a ser produto essencial num momento de recessão?

Os produtos ou serviços mais sustentáveis, mais confiáveis, mais duráveis. Correr só com a visão de curto prazo pode ser um caminho sem perenidade. Acho que o conceito da qualidade é dos mais importantes. Trabalhamos muito a substituição. Quebrou a geladeira, a gente compra outra. Cada vez mais os eletrodomésticos estão sendo criados para durar menos tempo. É necessário reconceituar.

Será a ressurreição dos sapateiros?

Adoro este sapato que estou usando, por exemplo. Às vezes o que pago para consertar o salto é quase o preço para comprar um novo. Tem que reconceituar em cima da qualidade, ter um custo de manutenção adequado, ofertar peças de reposição num período considerável. Sem peças, o que vai acontecer? Vai tudo para um lixão. O governo tem de rever o estímulo a certos segmentos da indústria visando à durabilidade. Seria um novo modo de produção que repercutiria no consumo. O mundo todo vai demandar isso.

A senhora mencionou a educação para o consumo como responsabilidade importante do governo nesta crise. Como ela pode ser feita?

No Brasil, apesar de o currículo do MEC prever desde 1998 que a educação para o consumo seja tema transversal, ela não tem sido implementada. Até desenvolvemos um material em 2005, feito para professores, que trabalha o consumo sustentável, o ambiente, a publicidade, a segurança de produtos e a ética. Mas as escolas já estão numa situação tão precária... Algumas talvez pensem: “Vou introduzir mais isso no currículo?” Agora, nos projetos em que tivemos experiência concreta, os professores se motivaram. Em matemática, trataram do crédito, do financiamento, dos juros. Também poderiam trabalhar direitos e deveres do consumidor. Penso nesses saques em Santa Catarina. Chamou atenção uma pessoa que se aproveitou da tragédia e encheu o carrinho com R$ 3 mil em mercadorias. “Todo mundo está pegando, também vou aproveitar”, como se não tivesse problema. São padrões que se reproduzem. Se o banco saqueou a poupança no Plano Verão, por que não fazer o mesmo? É certo que, em Santa Catarina, era uma situação-limite. Uma crise também aproxima as pessoas de situações-limite. Aí elas vão se mostrar.





A entrevista completa pode ser lida em:
http://www.unisinos.br/_ihu/index.php?option=com_noticias&Itemid=18&task=detalhe&id=18592

Reduzir, reutilizar, reciclar. Esse é o caminho para a sustentabilidade.


Entrevista com Flávio Tayra.


“A crise ambiental é fundamentalmente a crise de um modo de produção.” Essa é a definição do economista Flávio Tayra para o atual caos ambiental vivenciado em todo o mundo. A falta de preocupação com os recursos naturais estão nos aproximando “do limite da lógica de exploração econômica desmesurada”, alerta.


De acordo com o pesquisador, a internet é bom meio para mudar o curso da história e projetar um futuro diferente. Além disso, destaca, precisa ser incorporado um novo padrão de desenvolvimento capitalista, no qual “a percepção da finitude dos recursos e a necessidade de direcionamento de pesquisas” ajudem a encontrar soluções mais sustentáveis.


Em entrevista concedida por e-mail à IHU On-Line, ele diz que, para alcançar uma produção menos degradante em termos ambientais e um consumo equilibrado, “é preciso mover esforços” e direcionar a técnica “para a nossa sustentabilidade, nos libertando da pressão imediatista. O esforço individual precisa ser multiplicado até atingir a escala global”.


IHU On-Line – Como o senhor entende a atual crise ambiental?

Flávio Tayra –
A crise ambiental é fundamentalmente a crise de um modo de produção. Parece cada dia mais claro que estamos próximos do limite da lógica de exploração econômica desmesurada, sem preocupação com a sustentabilidade dos recursos. Além de afetar o meio físico e as outras espécies, o que já vem acontecendo há muito tempo, o limite de exploração do modelo atual fica cada dia mais claro na medida em que já passa a afetar diretamente a vida das pessoas, comprometendo sua saúde e suas condições de vida.

IHU On-Line – Em que sentido as novas tecnologias da informação podem ajudar a encontrar uma solução para a crise ambiental?

Flávio Tayra –
De maneira geral, acredito que o desenvolvimento tecnológico, bem conduzido, pode ser a nossa chance para chegarmos a uma espécie de “reequilíbrio” com a natureza. Alguns analistas mais céticos acreditam que só vamos começar a sentir a real necessidade desse reequilíbrio através do aprendizado pela dor, quando realmente sentirmos na pele os seus efeitos. Talvez estejamos nos aproximando desse momento, mas é evidente que a margem para a piora do quadro é muito grande. Para não chegarmos a esse extremo, o desenvolvimento de novas tecnologias, mais econômicas e menos degradantes, será uma condição essencial para a nossa sobrevivência.


Sem conscientização não há mudanças

Além dessa nova tecnologia ainda em gestação, creio que a outra importante variável no caminho para a sustentabilidade é o da conscientização e mobilização. Sabemos da iminência de uma crise ambiental de proporções seriíssimas, mas continuamos, a grande maioria, consumindo muito (e sendo estimulados a isso). O alto consumo é o parâmetro para o crescimento econômico. Vemos isso na atualidade: cresceremos menos em 2009 porque os Estados Unidos estão em crise e a China diminuirá sua produção; isso nos abalará pelos próximos anos. A economia precisa continuar caminhando e não temos alternativas econômicas sérias para entendê-la sem analisá-la sob o binômio produção/consumo. Precisamos mudar o padrão. Precisamos de uma produção menos degradante em termos ambientais e um consumo que seja mais equilibrado, sem os exageros do padrão norte-americano, que quer ser espalhado pelo resto do mundo, mas é altamente perdulário em termos energéticos. Se os chineses, em sua escalada econômica, adotarem o padrão americano, é evidente que os recursos ambientais do Planeta se esgotarão muito rapidamente.
Hoje já existem alguns estudos muito sérios veiculados, como o Relatório Stern, que dão conta da magnitude do problema. Segundo o relatório coordenado pelo economista britânico Nicholas Stern, se investirmos uma fatia pequena do PIB global atual (algo em torno de 2%), economizaremos a quantia absurda que teremos de gastar no futuro para mitigar os efeitos do aquecimento global (cerca de 25% do PIB). O problema é global, não é localizado num só país, e por conta disso exige uma conscientização, enfrentamento e uma solução global. Talvez a tecnologia da informação – estou pensando aqui na internet –, possa dar uma força nesse sentido. O sociólogo espanhol Manuel Castells, famoso por suas obras sobre a tecnologia da informação, destaca a importância das redes suscitadas pela internet em escala global e essa movimentação da sociedade civil tem por alvo o Estado para tentar obter mudanças em suas condições de vida. As mídias são muito importantes nesse sentido, pois através delas os atores da sociedade civil criam uma sensibilidade que indiretamente influencia as instituições políticas. Óbvio que ainda existe um longo caminho a percorrer nesse sentido.


IHU On-Line – Como a técnica pode interferir na natureza e construir um mundo mais sustentável?

Flávio Tayra –
Falando bem rapidamente, o paradigma da modernidade se deu sob a égide do domínio da técnica para o controle da natureza. Para conseguir se afastar do mundo assombrado pelos demônios era preciso que se desmistificasse uma porção de ideias até então largamente difundidas. Foi o grande motivador para o crescimento e grande expansão do conhecimento. E isso nos trouxe uma série de facilidades e melhores condições de bem-estar que não podem ser ignoradas. Do conhecimento científico para o crescimento econômico foi um pulo; e aí começam as mazelas ambientais. O que precisa ser incorporado, de imediato, num novo padrão de desenvolvimento capitalista é a percepção da finitude dos recursos e a necessidade de direcionamento de pesquisas para que sejam encontradas soluções mais sustentáveis. Parece óbvio, mas ainda não está claro para todo mundo. É preciso tornar fontes alternativas de energia, como a eólica e a solar, mais atraentes economicamente, bem como aproveitar os recursos naturais de maneira mais saudável (os famosos 3R´s: reduzir, reutilizar, reciclar). Para isso vai ser preciso o desenvolvimento de novas técnicas. Mas isso é apenas parte do processo.

IHU On-Line – Que relação pode estabelecer entre o mundo do trabalho e o meio ambiente? A partir dessa relação, quais são os limites para o desenvolvimento sustentável?

Flávio Tayra –
Numa das maiores tentativas de acordos globais em termos ambientais – o Protocolo de Kyoto – o que ficou patente foi a recusa americana na ratificação do tratado. Quando o distinto presidente Bush recusou a adoção, o seu argumento foi de que a assinatura poderia compreender a extinção de quase 5 milhões de postos de trabalho. Houve repercussão negativa sim, principalmente internacional, mas isso parece não ter afetado muito a percepção dos norte-americanos, que o re-elegeram dois anos depois (em 2004). Em resumo, todos temos as nossas preocupações ambientais, mas ela não é a prioridade zero para a grande maioria. A maioria, senão a sua totalidade, está muito mais preocupada com as suas questões mais mundanas e diárias. Para isso é preciso emprego, ou seja, renda. Nos anos 1970, ainda dava para falar em crescimento zero, mas nos 1980 já era evidente que esse discurso não emplacava mais. Como diz o sócio-economista Ignacy Sachs, precisamos encontrar fórmulas para crescer sem destruir.

IHU On-Line – O senhor percebe relações entre as crises ambiental e econômica? Como ambas estão interligadas na constituição do caos mundial?

Flávio Tayra –
É preciso resistir às tentações de se fazer análises do tipo “o declínio do império americano” para explicar a derrocada econômica atual. Acredito que existam relações entre as duas crises, mas ela é muito sutil, tênue. Mas não dá para falar: “a economia americana desabou porque é insustentável ambientalmente”. Está em crise porque isso acontece no sistema capitalista de tempos em tempos e porque faltaram mecanismos de regulação no seu sistema financeiro, eufóricos com uma criatividade desenfreada dos mecanismos de alavancagem, que permitiram anos de grande crescimento econômico. É evidente, no entanto, que o modo de ser (e de consumir) dos americanos só piora o quadro ambiental global: a pegada ecológica dos EUA (9,4 hectares por habitante) é quase 3,5 vezes superior à média mundial (2,7 hectares por habitante), que já está acima do aceitável (2,1 hectares por habitante).

IHU On-Line – A introdução da técnica sobre o mundo moderno mudou nossa maneira de perceber o meio ambiente?

Flávio Tayra –
A popularização do aquecimento global veio nos mostrar que o mundo tem limites. Por muito tempo, acreditamos na dispersão dos nossos dejetos. “O esgoto pode ir pro mar, pois lá, diante da sua imensidão, ele se dilui”. O mesmo pensamento em relação à poluição atmosférica. A percepção do nível exacerbado de poluição atmosférica devido ao uso de combustíveis fósseis já era muito clara nas grandes cidades, mas por algum motivo, acreditava-se que ele se dispersava e isso não traria maiores consequências além das localizadas. Em resumo, achava-se que dava pra varrer para baixo do tapete. Agora, com a percepção do aquecimento global, mesmo as regiões mais distantes como os pólos sentem os efeitos dessa poluição.
Essa poluição e utilização massiva dos recursos naturais só ganharam escala após o advento do capitalismo, que por sua vez, nasceu (e para muitos é também fruto) no bojo das grandes transformações da modernidade. Até então, talvez devido à pequena escala de produção econômica (que só veio com o capitalismo), as atividades do homem não chegavam a oferecer riscos mais graves ao meio ambiente.

IHU On-Line - O senhor diz que a modernidade rompeu o equilíbrio entre homem e natureza. Considerando a crise climática, chegou a hora de retomar esse enlace?

Flávio Tayra –
Esse equilíbrio foi desfeito na modernidade por conta do crescimento científico e do capitalismo. Para algumas correntes críticas da modernidade, como Marcuse, ciência e capitalismo são uma só coisa. Em poucas palavras, ciência (conhecimento racional e objetivo) e ideologia (concepção de mundo) se confundem. Desaparece o valor objetivo do conhecimento científico. Nesse sentido, a crítica da "razão instrumental", "razão unidimensional", ou "razão técnica" encerra, no fundo, uma crítica da própria civilização. Daí o ataque à "sociedade industrial" ou "tecnológica", justamente a sociedade moderna baseada na ciência e na tecnologia.

IHU On-Line – É possível estabelecer uma harmonia entre técnica e meio ambiente? Como ciência e técnica devem ser redelineadas?

Flávio Tayra –
A associação com o capitalismo decorre do fato de que o desenvolvimento dos meios de produção e obtenção dos recursos, a técnica, desencadeou o processo de grande crescimento econômico dos últimos séculos. De uma forma mais ou menos pragmática, temos de observar, no entanto, que, apesar dos tropeços de ordem social e ambiental, tal crescimento econômico trouxe também benefícios e facilidades que nos períodos anteriores seriam quase inimagináveis. Essas facilidades, por certo, deviam ser almejadas e aspiradas pelos homens. Segundo o historiador Lewis Mumford, a técnica existe como um elemento da cultura humana, que promove o bem ou o mal, segundo os que a exploram programem. A máquina em si não tem exigências ou fins. É o espírito humano que possui exigências e estabelece as suas finalidades. A tecnologia pode ser tanto boa quanto má. Existem processos tecnológicos estritamente danosos; mas isso não é necessariamente consequência de sua existência, e sim de seu mau uso. É preciso mover esforços para direcioná-la para a nossa sustentabilidade, nos liberando da pressão imediatista. Mas o esforço individual precisa ser multiplicado até atingir a escala global.

terça-feira, 13 de janeiro de 2009

A bioética versus o niilismo tecnocientífico



Niilismo tecnocientífico, holismo moral e a 'bioética global' de V. R. Potter


Por: Fermin Roland Schramm

(Professor da Escola Nacional da Saúde Pública da Fundação OswaldoCruz/Fiocruz)



Este ensaio enfoca as vicissitudes da moralidade contemporânea a partir de um duplo ponto de vista: seu questionamento radical devido à vigência do 'niilismo tecnocientífico', supostamente responsável por uma transformação inédita da condição humana, inclusive das suas referências valorativas e normativas; e a emergência da moral aplicada, conhecida como 'bioética', produto de uma concepção secular, pluralista e pós-universalista destas referências.
Enfoca, em particular, a primeira fase da bioética, conhecida como fase dos pioneiros' e representada pela proposta de 'ética global' de V. R. Potter, que pretendia estabelecer novas relações entre fatos científicos e valores morais. Argumenta que esta visão 'global', aplicada à moralidade, vem sendo recuperada atualmente pelas concepções holistas, que pretendem estabelecer uma nova aliança entre ciência e transcendência.


Introdução

Na era de vigência da assim chamada 'globalização' dos circuitos financeiros, das redes da informática e das tecnologias, da circulação de mercadorias e das formas de consumo, a bioética — versão contemporânea da ética aplicada aos avanços das ciências biomédicas (Toulmin, 1982), nascida no começo da década de 1970 nos Estados Unidos — parece estar também sujeita a um processo de reformulação.
A partir da década de 1990, a pertinência e a legitimidade da bioética estão praticamente reconhecidas, após duas décadas de acirrados debates acerca de seu estatuto epistemológico e metodológico, por um lado, de sua utilidade pública na resolução de dilemas morais relativos ao bem-estar humano e aos cuidados em saúde, por outro. Entretanto, no momento em que é reconhecida tanto pela Academia quanto por um público cada vez mais amplo, a bioética parece voltar-se também para suas origens (Reich, 1996), preocupando- se não apenas com sua pertinência disciplinar e legitimidade pública, mas também com sua história. Prova desta preocupação em resgatar suas raízes são algumas iniciativas retrospectivas promovidas a partir de 1990, como aquela de Corrado Viafora e da Fundação Lanza em Padova, Itália (Viafora, 1990), aquelas norte-americanas de Seattle, em 1992, e de Houston, em 1993 (Reich, 1994). Segundo Warren Thomas Reich (1978), primeiro editor da Encyclopedia of Bioethics, teria tido uma "dupla origem", a bioética, mas com uma "unidade de intenções", graças a seus dois 'pioneiros': o oncologista Van Rensselaer Potter e o neonatologista André Hellegers (idem, 1994; 1995; 1996).
Potter é hoje reconhecido como o criador do neologismo bioethics com o sentido amplo de 'ética da sobrevivência' e autor de uma concepção 'global' de bioética (Potter, 1990; 1988; 1970). Hellegers é considerado o responsável pela institucionalização do novo campo disciplinar da ética aplicada, concretizada com a fundação do Joseph and Rose Kennedy Institute for Study of Human Reproduction and Bioethics na Universidade de Georgetown, em 1971.
Mas, observa Reich (1995, pp. 20, 3D, esta "dupla" origem da bioética deve ser interpretada como uma identidade de intenções. De fato, contrariamente à interpretação a posteriori que opôs os programas dos dois pioneiros a partir do desen-volvimento ulterior da disciplina, durante o qual afirmou-se o "modelo Georgetown", nos primórdios da disciplina teria existido um mesmo tipo de projeto interdisciplinar e inovador no campo da moral, razão pela qual seria preciso "reunir os gêmeos que têm sido separados desde a nascença".
Esta interpretação da identidade de intenções parece pertinente se considerarmos a "transição paradigmática" entre modernidade e pós-modernidade que afeta atualmente vários campos do saber (Santos, 1994, p. 34), inclusive o campo da "ciência da moral" ou ética-, em particular, se considerarmos a tentativa de estabelecer uma "nova aliança" (Stengers e Prigogine, 1979) entre ciências naturais e ciências humanas.
Em outras palavras, pode-se dizer que a nova aliança pretende vincular teoricamente os 'fatos' tecnocientíficos e os Valores' humanos, tendo em vista alguma forma de controle prático sobre os novos poderes da tecnociência, e a fortiori da biotecnociência. Dessa forma, pretende-se responder aos anseios acerca dos possíveis abusos contra a dignidade humana e os direitos fundamentais, resultantes da aplicação indiscriminada das tecnologias biomédicas (Reich, 1996), fonte de novas formas de poder. A forma de tecnociência mais visada é a biotecnociência, devido aos seus possíveis efeitos daninhos a médio e longo prazo sobre a qualidade de vida das pessoas e das coletividades, assim como de seus ambientes naturais.
Depois de analisar criticamente o niilismo tecnocientífico e os debates iniciais da bioética, este artigo pretende apresentar o programa de 'bioética global' de V. R. Potter que, ao propor o novo campo interdisciplinar da bioética, participava das preocupações ecológicas e das cosmovisões alternativas e holísticas, que marcaram fortemente a cultura ocidental das décadas de 1960 e 1970, inclusive a cultura moral. Desde seus primeiros escritos publicados sobre a nova problemática moral (que será conhecida desde então como 'bioética'), Potter integrara no seu projeto moral esta visão holista e ambientalista (e em parte religiosa) presente no ethos alternativo norte-americano. Mas a concepção holista perdeu terreno nas décadas de 1970 e 1980 dentro do movimento da bioética, devido ao afirmar-se daquilo que Reich chamou de "modelo Georgetown". Atualmente, contudo, parece adquirir novo fôlego graças, por um lado, à globalização dos problemas, sobretudo os ambientais; por outro, devido ao interesse público crescente pelos desdobramentos possíveis da aplicação das biotecnologias (engenharia genética, clonagem etc.) no âmbito da vida, em particular, da vida humana.
Nesta fase de transição paradigmática que afeta os vários domínios da existência humana, delineia-se uma abordagem complexa da realidade e estabelecem-se novas inter-relações entre o universo dos fatos tecnocientíficos e o universo dos valores morais. Novas relações transdisciplinares são estabelecidas entre várias concepções morais, pretendendo-se, com isso, superar qualquer forma de reducionismo e de simplificação, considerados inadequados e insuficientes para enfrentar eficazmente os problemas do homem contemporâneo, seus novos poderes, logo seus novos direitos e deveres para com o fenômeno da vida. Ao repropor a leitura da obra de Potter, nossa intenção é dupla. Em primeiro lugar, 'crítica', porque no atual estágio de reconfiguração disciplinar no contexto da 'nova aliança' entre fatos e valores, é útil resgatar as raízes historicamente relevantes da disciplina. Em segundo, 'moral', porque atribuir ao legítimo proprietário suas idéias e intenções é uma questão de justiça com seu autor e com os leitores, sobretudo quando, após um longo esquecimento, tais idéias parecem ressurgir em outros contextos discursivos e valorativos.
Começaremos por caracterizar o assim chamado 'niilismo tecnocientífico' e seus efeitos sobre a moral. Em seguida, abordaremos o surgimento e o desenvolvimento da bioética. Por último, apresentaremos a concepção 'global' de bioética de Potter.




O niilismo tecnocientífico e suas relações com a moral

Ao analisar a situação da ética contemporânea no contexto da tecnociência, o sociólogo alemão Niklas Luhmann definiu a ética como um "paradigma perdido" (1990) e um "postulado compensatório" (1991, p. 55), epifenômeno do relativismo que afeta todo o edifício dos saberes e dos valores, em particular, seus fundamentos legitimadores, inclusive os fundamentos da moral. Esta 'perda' dar-se-ia apesar dos indícios de crescimento da demanda por ética nos vários âmbitos da vida contemporânea, como aqueles que se questionam sobre os aspectos morais implicados pelas novas formas de poder resultantes do saber-fazer tecnocientífico aplicado aos sistemas vivos.




Niklas Luhmann


Luhmann (1984, p. 319) já afirmara que "a ética pode exigir que se observe a lei moral pela sua força intrínseca, ... mas esta extravagância parece ser mais um sintoma de crise do que um esclarecimento científico". Outro sociólogo alemão, Ulrich Beck, autor de um conceituado ensaio sobre o caráter estrutural do 'risco' nas sociedades industriais e pós-industriais (1992), chegou a caracterizar esta presumida 'extravagância' inútil da ética com uma metáfora, afirmando que, "no modelo das ciências que se tornaram autônomas, a ética tem o papel que teriam os freios de uma bicicleta aplicados a um avião intercontinental" (1988, p. 194). Os dois sociólogos detectam um aspecto certamente relevante da moralidade do mundo contemporâneo, isto é, a profunda transformação que esta vem sofrendo graças ao impacto do saberfazer tecnocientífico sobre os vários âmbitos da vida individual e coletiva. Na nossa avaliação, contudo, este impacto não implica tanto uma eliminação tout court da moral, mas tão-somente uma reterritorialização desta e, no dizer de alguns autores (Jonas, 1987; 1979; Hottois, 1990; 1987), uma transformação e ampliação de seu campo, vindo a incluir aspectos antes impensáveis, tais como a responsabilidade para com as gerações futuras e até para com o fenômeno da vida como um todo.
A situação da ética contemporânea parece, portanto, assemelhar-se mais a de uma Torre de Babel de valores e princípios em conflito entre si, característica marcante de nossas sociedades secularizadas e pluralistas (Engelhardt, Jr., 1996), do que a uma verdadeira "nadificação" (Severino, 1982; 1980) da moralidade, resultante de uma cosmovisão cética radical sobre a legitimidade de qualquer instância reguladora e normalizadora do agir.
Mas, por outro lado, uma das razões principais que parecem confirmar a pertinência do ceticismo radical, resultante num processo de 'nadificação' da moral, é aquela que, a partir de uma interpretação da meditação de Heidegger (1990) sobre a Técnica enquanto metafísica realizada e esquecimento do Ser, pode ser caracterizada como 'niilismo tecnocientífico'.
Segundo esta interpretação, nossas existências encontrar-se-iam atualmente numa situação em que o paradigma perdido da ética teria sido corroído, e até substituído, pelo paradigma emergente da tecnociência, que impor-se-ia como único vencedor no 'mundo vivido', sendo que ele ordenaria e transformaria o mundo "com a inexorabilidade de um movimento geológico", graças a "uma 'logomaquia' infinita, sem vencedores ..., numa luta que tem por único resultado um ceticismo difuso" (Volpi, 1993, pp. 165, 164).
O niilismo tecnocientífico resultaria, portanto, numa racionalização funcional e radical da existência ou, mais exatamente, na 'racionalização' (pela ciência) e objetivação (pela técnica) do mundo vivido (Lebenswelt), fato este que implicaria também a fusão entre saber-fazer e poder, capaz de anular qualquer referência a paradigmas éticos legitimadores e reguladores, e tendo como efeitos inelutáveis conflitos inconciliáveis e intraduzíveis numa linguagem comum.
Assim sendo, nesta perspectiva nadificadora qualquer tentativa 'fundacionista' que pretendesse restaurar uma teoria ética nos moldes tradicionais (como 'ética das virtudes'), ou propor uma nova ética unificada por algum novo princípio geral, acabaria tornando-se pura ilusão de uma "época pré-científica" (idem, ibidem, p. 166).
Nesse caso, as únicas condutas razoáveis possíveis parecem ser aquelas decorrentes do fim da moralidade e sua substituição por um cinismo individualista e narcisista violento ou, então, da aceitação do relativismo dos valores, do caráter provisório, convencional e negociável de qualquer princípio instituinte, que não implicaria necessariamente uma nadificação da moralidade, mas sim sua complexificação e pluralização.
A tese da morte da moral não é facilmente sustentável, apesar de vários indícios que parecem confirmá-la, tais como o aumento de comportamentos violentos e a aparente generalização de uma verdadeira cultura cínica e da crueldade nas relações interpessoais, de grupos, coletividades, etnias e nações. Na nossa interpretação, tais comportamentos não indicariam uma verdadeira 'morte' da moral, fato que implicaria logicamente também a morte do social, logo de qualquer tipo de forma de vida humana minimamente organizada. Mais razoavelmente, dever-se-ia falar numa espécie de 'complexificação' do campo da moralidade. Ela resultaria, por um lado, do fim da moral tradicional, embasada em deveres absolutos, inquestionáveis e compartilhados por todos os membros de uma comunidade, e, por outro, da emergência de um novo tipo de moralidade resultante da coexistência conflitiva e precária de interesses (legítimos ou não) e valores correspondentes. Em suma, o ethos que parece delinear-se na nossa contemporaneidade tecnocientífica, pós-moderna e "pós-moralista" (Lipovetsky, 1992) parece ser mais pertinentemente representado pela imagem de "estrangeiros morais" (Engelhardt, Jr., 1996) do que por aquela de niilistas morais.
É neste contexto secularizado, pluralista e relativista que se situa o debate acerca das éticas aplicadas, em particular, acerca da bioética, uma das formas principais de ética aplicada dos nossos tempos.





Bioética: disciplina filosófica, nova ciência ou mterciência?

De fato, a bioética nasce no bojo da reabilitação da filosofia prática da década de I960 (Berti, 1993), trazida pela reflexão sobre os novos dilemas morais decorrentes da transformação do saber-fazer das ciências biomédicas. Constitui um dos momentos fortes desta recuperação, junto com a ética ambiental, a ética animal, a ética dos negócios, a tal ponto que pode-se dizer, parafraseando Toulmin (1982), que estas têm salvado a vida da ética, logo da própria filosofia prática.(1)
Desde seu começo, uma primeira questão relevante para a identidade da bioética foi a de saber se deveria ser uma disciplina científica, uma disciplina filosófica ou alguma 'interdisciplina', situada na fronteira comum entre ciência e filosofia e delineada por algum problema moral emergente (como os problemas ambientais ou outros). Caso se optasse pela terceira possibilidade, isso implicaria a transgressão da lei de Hume, que postula a distinção e a separação rigorosas entre fatos e valores, os fatos sendo referidos àquilo que supostamente é, os valores àquilo que deve ser. Esta lei é em princípio aceita em filosofia moral desde que George Moore (1903) a indicou para evitar aquela que chamou de falácia naturalista e que consiste em deduzir os aspectos normativos (o que 'deve ser') a partir de descrições da realidade (o que 'é').
Tanto Potter quanto Hellegers optaram pelo questionamento desta separação rigorosa, utilizando a metáfora da 'ponte' para sublinhar a vocação programaticamente interdisciplinar da bioética: 'ponte' entre ciência biológica e filosofia, para Potter (1971, 1970); 'ponte' entre medicina e filosofia para Hellegers (1976). Com a fundação do Kennedy Institute, em 1971, seguida em 1978 pela publicação da primeira Encyclopedia of Bioetbics (Reich, 1978), estabeleceu-se um consenso entre especialistas, que passaram a considerar a bioética como campo interdisciplinar da filosofia moral aplicada às ciências da vida e da saúde. Mais especificamente, a bioética, sem sair do campo da filosofia, tornou-se uma forma de ética aplicada que deveria lidar com os aspectos simultaneamente descritivos, explicativos e normativos relacionados aos fenômenos da biomedicina (Scarpelli, 1996). Dessa forma, assumia o papel de descrever e explicar de forma sistemática os comportamentos morais operantes nas várias culturas, individualizando os valores reguladores de tais comportamentos nas situações concretas de conflito relativos às modalidades 'corretas' de nascer, adoecer e morrer. O método adotado na avaliação de tais conflitos variava conforme a teoria moral adotada, mas, dentre estas, assumiu destaque especial o método conhecido como principialismo (principialism) (Clouser e Gert, 1990; Beauchamp e Childress, 1979), que consiste em aplicar uma série de princípios muito gerais, e praticamente consensuais, de uma determinada comunidade moral, aos casos concretos para avaliar, de forma racional e imparcial, sua moralidade.
Como sintetizara Reich na 'Apresentação' da Encyclopedia, a bioética deveria ser considerada como "o estudo sistemático da conduta humana, conduzido no âmbito das ciências da vida e da saúde, visto à luz dos valores e princípios morais". Mais recentemente, o bioeticista italiano Maurizio Mori (1992, p. 442) definiu-a como "reflexão crítica e (racionalmente) articulada sobre os problemas normativos levantados pela intervenção humana no mundo médico e biológico".
Esta foi a concepção majoritária em bioética durante as duas primeiras décadas de sua existência.
Na história da bioética existe também uma posição que se tornou minoritária, mas que parece ressurgir, junto com a reabilitação da abordagem holista nas ciências, que acompanha o fenômeno societário da globalização. Em particular, graças ao renovado interesse, por um lado, pelas teorias "comunitaristas" (Rasmussen, 1990) e "ecosóficas" (Naess, 1989), e, por outro, pelas tentativas de criar um novo ponto de vista 'holista' capaz de vincular ciência e transcendência em unidades 'globais' (Ardigò e Garelli, 1989; Barbour, 1990; Barrow, 1994; Brooke, 1991; Davies, 1994; 1988; Küng, 1992; Lazorthes, 1993; Peacocke, 1993; Russell, Stoeger e Coyne, 1988; Segundo, 1995; Talbot, 1993). É este movimento que pode ser caracterizado pela metáfora prigoginiana da "nova aliança", proposta inicialmente como um diálogo entre saber científico e saber humanístico (Stengers e Prigogine, 1979), a fim de superar a oposição tradicional entre "as duas culturas".
Contudo, junto com estas tentativas promissoras de ultrapassar dualismos, reducionismos e mecanicismos rumo a uma visão complexa (ou será que esta não é uma forma disfarçada de 'nova síntese' de tipo hegeliano?), supostamente mais conforme à rede de inter-relações existentes entre saberes e crenças, impulsionada tanto pelas ciências da vida quanto por uma espécie de 'reencantamento' do mundo, assiste-se também a um crescente movimento 'obscurantista', de tipo tecnófobo, induzido pelo temor perante os novos poderes da tecnociência, que atravessa tanto o senso comum da opinião pública quanto aquela que o matemático francês René Thom (1990, p. 61) chamou de "a epistemologia popular" dos cientistas.
Esta concepção holística e complexa, que pretende ser mais adaptada ao caráter problemático da moralidade na época pósmoderna, parece estar em sintonia com a concepção global proposta inicialmente por Potter (1975, p. 2.297), quando este autor vislumbrava uma "abordagem cibernética em vista de uma nova sabedoria do humano".
De fato, para Potter, esta ulterior versão de scienza nuova (como diria Giambattista Vico) deveria conseguir integrar simultaneamente três ordens de questões: os problemas médicos relativos à biologia humana, amplamente entendida; os problemas sanitários resultantes da degradação do meio ambiente natural e do habitat das outras espécies vivas; e os problemas morais decorrentes da competência humana em acompanhar, ou não, a transformação da qualidade de vida humana neste novo contexto tecnocientífico. Assim sendo, pode-se afirmar que as questões levantadas a partir do temor perante os novos poderes da tecnociência já estavam presentes mutatis mutandi na proposta de Potter, quando o autor concebia a bioética como uma nova ciência da vida, de tipo interdisciplinar e preocupada com a sobrevivência da espécie humana, quer dizer, capaz de integrar os conhecimentos da biologia humana (amplamente entendida); a competência em criar e acompanhar o desenvolvimento dos valores humanos; a emergência dos problemas relativos ao meio ambiente e ao relacionamento correto com os outros seres vivos, em prol da qualidade de vida humana (idem, 1971). Mas como explicar este interesse renovado pela globalidade dos problemas morais, em particular, para a bioética global de Potter, após duas décadas de predomínio das análises inspiradas prevalentemente nos métodos da filosofia analítica? Os motivos são provavelmente muitos e caberia a uma análise sociológica da cultura ou, talvez, a uma "epidemiologia das idéias" (Sperber, 1985) detectá-los com mais precisão, o que foge à competência e aos objetivos deste artigo. Contudo, pode-se supor a existência de um efeito detectável no Zeitgeist pós-modemo e na sua vertente 'pós-analítica' e 'neopragmática', sintetizável, por exemplo, pelas posições defendidas pelo filósofo norte-americano Richard Rorty (1989; 1982; 1979).





Rorty



Para Rorty, nossa época estaria assistindo ao esgotamento do programa da filosofia analítica anglo-americana que, desde o linguistic turn impulsionado pela lição de Wittgenstein, tornara obsoleta a problemática metafísica fundacionista em filosofia. Atualmente, esta não deveria mais preocupar-se em estabelecer proposições verdadeiras supostamente conformes à realidade existente (conclusão à qual, seja dito de passagem, já chegara o próprio Wittgenstein [1953]), nem proposições bem formadas lingüística e semanticamente, mas em criar o que é bem, bom e belo de ser pensado. Nesse sentido, o programa atual da filosofia só poderia ser ético e estético, preocupado com uma forte dimensão terapêutica consistente em reduzir o cinismo, a violência e a crueldade dos humanos.
Assim sendo, o programa neopragmático de Rorty consiste em perseguir a legitimidade de nossos enunciados não a partir de alguma conformidade com a realidade existente e independentemente dos atores envolvidos, mas porque tais enunciados teriam a capacidade de expressar nossas atitudes concretas perante nós mesmos, os outros e o mundo; ou seja, porque permitiriam incluir no nosso domínio de experiência (o nós) a solidariedade com o outro e as diferenças integráveis numa comunidade moral determinada (Rorty, 1989; 1979). Isto implicaria, para a própria filosofia, formular perguntas de forma e conteúdo novos, capazes de obter novas respostas úteis para lidar com nossos problemas concretos, mas tendo em vista também um programa de solidariedade capaz de integrar o 'outro' no universo de nossos cuidados.
Mas, além deste tipo de razões externas, aqui sintetizadas pelo recurso aos textos de Rorty, e que poderiam explicar cde fora' o renovado interesse pela 'ética global' defendida por Potter, é preciso também saber se existem razões internas à própria bioética, quer dizer, formadas a partir do desenvolvimento de sua problemática específica. Para tanto, uma interessante sugestão nos é fornecida por Reichlin (1994), quando aborda o estatuto epistemológico da disciplina, a fim de esclarecer os motivos dos impasses na prática clínica. Reichlin parte da constatação de que a bioética é de fato um tipo de conhecimento complexo, formado por três níveis hierárquicos distintos, mas inter-relacionados, de análise. Portanto, três concepções diferentes sobre o estatuto epistemológico da bioética coabitam um mesmo campo disciplinar (ou interdisciplinar):

1) a concepção que considera a bioética como aplicação de princípios morais aos problemas biomédicos em geral;

2) a concepção que a considera uma metodologia para conseguir julgamentos morais de casos clínicos; e

3) a concepção mais abrangente e interdisciplinar que permite a investigação pública da dimensão moral dos problemas sanitários.

Para o autor, cada uma destas concepções só alcança uma parte da problemática, e o desconhecimento deste caráter complexo da bioética estaria na origem de boa parte das confusões e dos conflitos que a atravessam, pois:

a) o primeiro nível implicaria análises aprofundadas do agir humano do ponto de vista das ciências biomédicas, feitas à luz de uma teoria ética geral capaz de detectar o que pode ser considerado 'bom', ou não, para a vida humana;

b) o segundo nível se relaciona com a formação profissional, objetivando construir um ethos adequado para os profissionais de saúde, que incluísse simultaneamente a responsabilização do profissional por suas práticas, o desenvolvimento de sua habilidade em perceber os valores morais em jogo numa situação determinada, e a competência em traduzir e aplicar os princípios éticos abstratos a práticas concretas; e

c) o terceiro teria relação com os aspectos jurídicos, políticos e sociológicos dos problemas morais, visando, sobretudo, a elaboração de orientações para o legislador, feitas num clima interdisciplinar, pluralista e tolerante.

Entretanto, tais níveis, embora inter-relacionados teoricamente, não deveriam ser confundidos na prática, pois cada um exigiria competências específicas. Por exemplo: o jurista não deveria intervir no primeiro nível, reservado à análise do filósofo, situado no "topo de uma relação hierárquica entre os três níveis" (idem, ibidem, p. 100), ao passo que o filósofo não deveria substituir o médico na solução de casos concretos, limitando-se ao papel de assessor, quando convocado pelo próprio profissional de saúde. Isso implicaria que "o trabalho bioético não se esgota com a solução dos problemas teóricos ... e que as questões que surgem nos outros dois níveis não podem ser resolvidas simplesmente deduzindo conseqüências a partir da compreensão teórica do assunto".
Os três níveis de pertinência apontados por Reichlin coexistem na concepção de bioética elaborada pelos pioneiros, quando esta surgia do magma de novos questionamentos que os movimentos sócio-culturais ocidentais formulavam sobre o sentido e os rumos da sociedade contemporânea. Em outras palavras, nesta primeira fase a bioética emergiu no contexto de uma nova sensibilidade em formação, inclusive moral. Sensibilidade mais livre com respeito aos ensinamentos da tradição considerados obsoletos para enfrentar os novos desafios éticos advindos da 'revolução terapêutica' das décadas de 1930 e 1940 e da 'revolução biológica' ocorrida nas de I960 e 1970 (Bernard, 1990), e também mais preocupada com as possíveis conseqüências, para o bem-estar humano, das escolhas tecnológicas, políticas, econômicas e ambientais que vinham sendo feitas nas sociedades em rápida evolução.
Nesta fase, optou-se afinal por um conjunto de valores norteadores, chamados princípios prima facie (Ross, 1930), tais como a autonomia individual, a justiça social, a beneficência e não maleficência, reunidos na já mencionada teoria do principialismo (Clouser e Gert, 1990; Beauchamp e Childress, 1994; 1979; Gillon, 1994).
Mas, desde a década de 1990, esta vem sofrendo críticas: argumenta-se que este modo de enfrentar os dilemas morais (que se apresentam no exercício concreto da medicina) resulta em conflitos insolúveis porque o 'mantra' principialista careceria de uma teoria moral unificada, capaz de dirimir tais dilemas (Clouser e Gert, 1990).
Esta crítica parece trazer de volta justamente aquilo que o principialismo, enquanto característica específica da identidade "secular" da bioética (Reich, 1996, p. 324), queria evitar e que a filosofia analítica ajudou a superar, a saber: o fundacionismo e a subsunção de todos os jogos de linguagem numa linguagem única e universalmente legítima.
Em nossa avaliação, este desejo de uma moral unificada pode ser considerado como indício do retorno de uma visão 'global' dos problemas morais, e é este fato que nos leva de volta a Potter, pois parece que a discussão moral da presente década esteja trazendo de volta as discussões travadas no começo da história da bioética. No retorno em espiral às origens, os problemas colocados por Potter podem ser utilizados como argumentos contra o principialismo, supostamente incapaz de dar conta da globalidade dos problemas morais, em consonância com um suposto caráter globalizado da tecnociência. Em particular, as questões levantadas por Potter adquirem, como vimos, um novo fôlego para as vertentes filosóficas que aliam conteúdos religiosos e ecológicos em visões holísticas da ciência. Mas é justamente a pertinência do holismo para abordar a situação de "estrangeiros morais" (Engelhardt, Jr., 1996), em que se debateriam as sociedades pluralistas e democráticas atuais, que está em questão.
Resumindo, o retorno ao texto de Potter justifica-se por uma contingência histórica e porque suas questões podem esclarecer a volta do pensamento global em ética.




A bioética global de V. R. Potter

Quando o oncologista Van Rensselaer Potter criou o neologismo bioethics num artigo publicado em 1970, a intenção era fundar uma "ciência da sobrevivência" resultante da junção entre "valores éticos e fatos biológicos". Um ano mais tarde, expôs suas idéias para um público mais vasto que o das revistas indexadas. Com as expressões "ciência da sobrevivência" e "ponte para o futuro", queria chamar a atenção para uma série de perigos que, conforme os anseios da época, estariam ameaçando a espécie humana, a menos que esta tivesse em devida consideração os ensinamentos fornecidos pelas ciências biológicas e a teoria da evolução.
A intenção do autor era, portanto, sublinhar a necessidade de uma nova forma de relacionamento com o mundo da vida, logo de uma nova ética, em sintonia com os novos tempos e preocupada com a qualidade de vida dos humanos presentes e futuros.
Por isso, Potter propôs a metáfora da 'ponte' para designar a nova disciplina emergente — a bioética — cujo conteúdo programático seria o de relacionar o desejo de uma "nova sabedoria que proporcion(asse) o conhecimento de como usar o conhecimento para a sobrevivência humana e o melhoramento da qualidade de vida" com a necessidade de desenvolver "um entendimento realista do conhecimento biológico e seus limites, a fim de fazer recomendações no campo das políticas públicas" (Potter, 1970, pp. 127, 131).
Como cidadão, Potter (idem, p. 137) compartilhava as preocupações ecológicas que faziam parte do imaginário norteamericano daqueles anos, mas, enquanto cientista, considerava-se um "mecanicista pragmático". Para o autor, não existia contradição entre o ponto de vista prevalentemente 'holista' do cidadão e aquele 'mecanicista' do homem da ciência. Ao tomar posição sobre o debate reducionismo versus holismo, Potter (idem, p. 136) considera absurda esta dicotomia no contexto das ciências biológicas, pois se "o inteiro organismo é mais do que a soma de suas partes", ele "origina-se da comunicação entre partes", sendo que "a comunicação é em termos de moléculas e é melhor compreendida pelo reducionismo, ao passo que ela forma a rede de feedbacks e a integração estrutural que torna realidade o mecanismo holístico", ou seja, "cada nível hierárquico é formado pelas conexões de feedbacks que vinculam suas unidades, integrando-as numa organização superior". Por isso, concluía Potter, "devemos combinar o reducionismo biológico e o holismo; em seguida, rumar para um holismo ecológico e ético, se é que o homem deve sobreviver e prosperar".
Em suma, o cientista Potter, conhecedor da teoria da evolução, sabia que a sobrevivência da espécie humana não constitui uma necessidade intrínseca da evolução, imputável a um pretenso "princípio antrópico", teleonômico, regulador e finalizador da evolução da matéria do simples ao complexo e do não humano para o humano. Mas para entender este ponto de vista integrador entre visão reducionista e visão holista é preciso ultrapassar a tendência a "equiparar reducionismo e mecanicismo, assim como o holismo com o vitalismo" (idem, ibidem, p. 136), pois só assim seria possível preservar níveis pertinentes e distintos de análise sem perder a visão do conjunto.
Com efeito, o mecanicismo explica a vida em termos meramente químicos e físicos e o vitalismo acredita que nenhum tipo de análise racional seja possível ao nível do todo. Em outras palavras, os mecanicistas consideram os sistemas vivos como sendo meras máquinas, mas sem saber explicar que tipo de máquinas são — questão aparentemente resolvida pela teoria autopoiética (Maturana e Varela, 1979; 1973) — ao passo que os vitalistas os consideram como totalidades inefáveis e misteriosas, portanto subtraídas ao poder explicativo.
É provável que o "mecanicista pragmático" Potter não quisesse privar-se de nenhum dos dois níveis da análise (o mecanicista e o holista), tentando integrá-los numa perspectiva global, mas preservando a especificidade de cada nível conforme o objetivo a ser atingido (a comunicação entre moléculas ou a integração estrutural ao nível do organismo).
Em suma, pode-se supor que quisesse preservar a distinção sem se privar da possibilidade de relacionar os níveis distintos. Potter (idem, ibidem, pp. 130, 137, 138, 139, 150-1) queria "mais ciência e melhor" porque considerava que o problema ético relevante não era o de saber se devemos interferir ou não no ambiente natural e nos processos biológicos. Para ele, contrariamente a uma doxa preservacionista recorrente em determinados ambientes conhecidos como ecologia profunda {deep ecology), esta questão já estava resolvida porque "a evolução cultural tem decidido que o humano quer transformar seu ambiente e sua própria biologia" e porque ele o faz "numa escala colossal (e) irreversível", razão pela qual "só podemos pleitear mais inteligência, mais preservação e mais responsabilidade ..., não uma moratória do novo conhecimento mas um acoplamento entre conhecimento biológico e valores humanos", logo "uma ética interdisciplinar ou biologicamente fundamentada".
A única escolha razoável para a humanidade supostamente ameaçada, no estágio evolutivo atual, seria "lidar com o conhecimento perigoso, procurando mais conhecimento", sendo que não intervir seria também uma forma de intervenção. É por isso que a solução moral adequada ao atual estágio evolutivo seria aquela representada pela bioética, entendida como forma de "balancear os apetites culturais frente às necessidades fisiológicas, no sentido de políticas públicas capazes de gerar a sabedoria necessária com relação ao como usar o saber em prol do bem social".
Estas questões foram retomadas em 1988 e 1990, quando o autor formulou explicitamente a teoria da "bioética global" para responder a seus críticos. Nesta ocasião, Potter (1990, p. 91) reiterou e aprofundou as posições iniciais de 1970, sublinhando o sentido de uma "moral evolutiva", ao mesmo tempo "humilde", "responsável" e "competente", ou seja, "diretamente voltada para a sobrevivência a longo prazo da espécie humana; ... a proteção da dignidade humana; ... o controle da fertilidade; a preservação e o restabelecimento de um ambiente saudável". Em particular, esta moral evolutiva deveria propiciar a capacidade de enfrentar aquilo que chamou de "fluxo fatal" (fatal flaw), presente na evolução, quer dizer, a lei evolutiva segundo a qual a seleção natural favoreceria apenas o que é imediatamente útil para os indivíduos altamente especializados e perfeitamente adaptados a seu meio, mas que pode ser fatal a longo prazo para uma determinada espécie, constituindo uma desvantagem, ou "fatalidade", para esta (como é o caso, relatado por Gould [1982], do panda gigante). Por isso, concluía Potter (idem, p. 98), o meio cultural (construção específica da espécie humana) deveria balancear os apetites, de curto prazo, do indivíduo e as necessidades, de longo prazo, da espécie, a fim de poder vislumbrar "uma sobrevivência aceitável, em contraste com a mera sobrevivência, ou uma sobrevivência miserável".
Contrariamente às outras espécies, para os humanos o desfecho da evolução pode ser, em princípio, diferente, desde que saibam opor-se ao fluxo fatal com os meios culturais e tecnocientíficos disponíveis, e que desejem, coletivamente, a sobrevivência.
É neste sentido que o desenvolvimento e a utilização de uma ciência competente em projetar a sobrevivência da espécie humana adquiriria, aos olhos de Potter, uma relevância ética. Numa entrevista posterior (Spinsanti, 1994), esclareceu que seu interesse pelas relações entre saber científico e responsabilidade moral devia ser compreendido à luz de sua formação religiosa presbiteriana e da preocupação com os problemas ecológicos das décadas de 1960 e 1970. Com relação a estes problemas reconheceu um débito com o pensamento de Leopold (1949), que os vinha abordando desde a década de 1940, quando dividiu o desenvolvimento moral em três estágios sucessivos: o da regulação das relações entre indivíduos; o das relações entre indivíduos e sociedade; e o das relações entre o homem e a biosfera.
Preocupado com o futuro da humanidade, Potter ficou impressionado com a leitura de um artigo de Margareth Mead (1957), no qual ela propunha a criação de cadeiras de ensino universitário sobre o futuro. Retomando o projeto da antropóloga, publicou em 1970, na mesma revista Science, um artigo sobre a 'dupla' responsabilidade dos universitários: não só com a tradicional procura e transmissão do conhecimento Verdadeiro', mas também com a sobrevivência da espécie humana e a qualidade de vida futura (Potter et ai, 1970).
Como o autor esclareceu na citada entrevista, esta "procura da verdade orientada para o futuro" implicaria tanto uma postura de "humildade frente ao futuro" quanto em "superar os limites disciplinares; exercer e aceitar as críticas e desenvolver abordagens e soluções pluralistas, apoiando-se em grupos interdisciplinares" (Spinsanti, 1994, p. 236).
É neste contexto de preocupações que deve ser vista a sua primeira proposta de uma bioética como ponte para o futuro. Contudo, ao propor este "novo paradigma" a "serviço da sobrevivência", Potter queria, em primeiro lugar, superar a contraposição entre ciência e ética, combinando "o conhecimento biológico com os valores humanos, num sistema biocibernético aberto de auto-avaliação".
Entretanto, a sua intenção não era propor mais uma síntese entre ciência e filosofia, mas sim "opor-se à perspectiva que considera a ética como vinda de fora da ciência, isto é, vinda da reflexão filosófica e teológica". Em suma, julgava que a ciência estava livre de valores e, como bom leitor de Teilhard de Chardin, considerava que a evolução moral fazia parte da própria hominização e, como tal, constituía um objeto legítimo da investigação científica. Entretanto, a 'aliança' entre ciência e filosofia não implicaria subordinar uma à outra. Implicaria, sim, vincular valores humanos e conhecimentos científicos, em particular aqueles vindos da fisiologia, genética e ecologia, pois "uma sobrevivência que salve a qualidade (da vida) só é possível se os sistemas éticos são compatíveis com o mundo real".
O novo paradigma da bioética pretendia, assim, "relacionar nossa natureza biológica e o conhecimento realista do mundo biológico com a formulação de políticas orientadas para a promoção do bem-estar social". À pergunta se a bioética não seria uma espécie de "religião da sobrevivência", Potter propôs corrigir a expressão substituindo-a por "exigência metaética" (idem, ibidem, pp. 237, 38, 239, 240).
Resumindo, a bioética global de Potter pretendia desenvolver uma "sabedoria biológica capaz de utilizar o saber para sobreviver", sendo que "a extensão da ética deste terceiro estágio (o de Leopold) é uma possibilidade evolutiva e uma necessidade ecológica" (idem, ibidem, pp. 241 e 244; Leopold, 1949).
Os problemas epistemológicos e metodológicos que a bioética global de Potter levanta são muitos, a começar pelo fato de contrariar a lei de Hume e de incorrer na 'falácia naturalista', que, como vimos, constituem uma espécie de limite para além do qual o discurso ético perderia sua identidade disciplinar.
Contudo, este tipo de transgressão aos limites estabelecidos entre campos do conhecimento são hoje moeda corrente nas concepções holistas em ética. Nesse sentido, citei longamente o pensador norte-americano porque sua posição, embora tenha se tornado minoritária em bioética,(2) parece hoje ressurgir nos anseios referentes aos biopoderes das biotecnociências no contexto de globalização vigente em termos de tecnologias, investimentos e informações. Valeu a pena, portanto, lembrar um dos pioneiros da bioética e mostrar como enfrentou esta problemática.




Conclusão

Como vimos, junto com o fenômeno da globalização (em relação à qual a bioética global de Potter funciona como uma espécie de metáfora antecipadora em ética), vêm também os 'anticorpos', representados pelas reações de desconfiança perante os supostos bem-feitos da tecnociência. Em particular, no imaginário do senso comum, assiste-se ao temor à biotecnociência e aos cenários apocalípticos de servidão e escravidão do humano que ela tornaria possíveis. Mas esta preocupação não faz parte apenas do imaginário popular. Ela pertence ao próprio imaginário filosófico do século XX, pois aparece nos escritos de Heidegger (1990), quando este fala sobre a essência da Técnica e a designa com o termo Ge-stellque, no idioleto heideggeriano significa "armação", "arrazoamento" e "imposição", resultante num "esquecimento do Ser" e na própria instrumentalização inelutável do humano.
Mas, como sugeriu o psicanalista Contardo Calligaris (1991), a instrumentalização do humano só ocorre se houver desejo de ser instrumento, quer dizer, por razões internas ao próprio sujeito e não automaticamente, pela simples existência da biotecnociência.
A este respeito, a posição de Potter parece clara: a reforma do humano por ele mesmo é um processo evolutivo irreversível, necessário à própria sobrevivência da espécie que, com a vigência do paradigma biotecnocientífico torna o Homo sapiens literalmente Homo creator (Anders, 1992).
Ou seja, para enfrentar os "riscos estruturais" crescentes que acompanham inevitavelmente os avanços tecnocientíficos das sociedades "neomodernas" atuais (Beck, 1992), só teríamos que melhorar nosso saber-fazer, mas tendo em vista também uma maior dose de sabedoria, capaz de aproveitar a "heurística do temor", aconselhada por (Jonas, 1987), em prol de uma liberdade responsável ou, nos termos de Potter, de uma "humildade responsável" (Potter, 1975).
No nosso entender, a desconfiança perante os biopoderes é salutar (é isso em substância que sugerem tanto a 'heurística do temor' de Jonas quanto a 'humildade responsável' de Potter), mas desde que ela não se torne uma posição obscurantista decorrente de avaliações erradas sobre o real alcance da biotecnociência, tanto no que diz respeito à sua capacidade em resolver problemas concretos da biologia humana quanto no que se refere aos possíveis desdobramentos futuros em termos de novas formas de instrumentalização e de escravidão do humano.
De fato, como sugere Jonas (1987), para a nossa própria evolução em ambientes cada vez mais complexos, não podemos mais prescindir dos avanços biotecnocientíficos. Tratando-se de uma condição necessária de nossa própria liberdade, logo também um estímulo para aprofundar nossa responsabilidade.
Em outras palavras, do momento em que nos tornamos potencialmente competentes em nos autocriar (graças aos progressos das biotecnociências), conforme nossos projetos e desejos (compartilhados e/ou negociados nas relações interpessoais e coletivas), tornamo-nos em princípio mais autônomos com relação a leis naturais e a princípios de autoridade transcendentes. Mas esta maior autonomia implica, também, maior responsabilidade, ou seja, uma "responsabilidade radical" (Schramm, 1996) para com o fenômeno da vida humana, que é uma reforma constante do natural pelo cultural, inclusive pela biotecnociência. Existem, evidentemente, limites orgânicos, psicológicos e sociais que devem ser respeitados a cada estágio evolutivo, sintetizáveis pela sabedoria prudencialznstotélica, mas tais limites são também dinâmicos, quer dizer, sujeitos ao processo de evolução que, no caso do humano, implicam atingir, graças à biotecnociência, novos patamares de "humanitude" (Jacquard, 1987), indispensáveis para a própria sobrevivência da espécie Homo sapiens num ambiente em rápida transformação pelas próprias mãos do Homo creator.


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Notas

1 Neste artigo, Toulmin afirma que a medicina teria tirado a ética do campo da metafísica, trazendo-a de volta para o domínio do debate público, e fornecendo a seus profissionais uma legitimidade social que não existia mais desde a época da Grécia Clássica.

2 O próprio Potter reconheceu isso: "tenho a impressão de que o movimento adotou o termo que propus, mas não as preocupações que eram as minhas" (Spinsanti, 1994, p. 244).




SCHRAMM, F. R.: 'Technoscientific nihilism, moral holism, and V. R. Potter's global bioethics'.

This essay addresses the vicissitudes of contemporary morality from a double perspective: on the one hand, a radical questioning grounded in the prevailing technoscientific nihilism, allegedly responsible for an unprecedented transformation in the human condition, including therein reference points regarding values and norms, and, on the other hand, the emergence of applied morals, known asbioethics, which is the result of a secular, pluralistic, and post-universalistic understanding of such reference points. Special focus is placed on the early phase of bioethics, known as the ''pioneerphase", when V. R Potter posited his "global ethics", meant to establish a new kind of relationship between scientific f acts and moral values. The essay argues that holistic concepts that seek to establish a new alliance between science and transcendence are currently being revived by this global viewpoint, applied to morality

KEYWORDS: technoscientific nihilism, holism, global bioethics.


Publicado em : História, Ciências, Saúde— Manguinhos, vol. IV(1):95-115 mar.-jun. 1997.